A compra e venda ou a constituição de garantias imobiliárias costuma empregar uma série de diligências para se evitar a ineficácia do negócio. Um dos grandes receios é que se configure a fraude à execução judicial, motivo pelo qual são tiradas diversas certidões, em especial as forenses.
Para (tentar) tornar a análise de riscos processuais mais objetiva, foi editada a Lei Federal nº 13.097, em vigor desde 21 de fevereiro de 2015, com destaque para o parágrafo único do art. 54:
“Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:
I – registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias;
II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil;
III – averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e
IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil.
Parágrafo único. Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção, ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 , e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel”.
A literalidade do referido dispositivo legal gerou a expectativa no mercado imobiliário de que as alegações de fraude à execução dependeriam, a partir daquele momento, de prova de existência de penhora registrada na matrícula imobiliária.
Parecia se tratar da consolidação dos entendimentos jurisprudenciais fixados no enunciado n° 375 (de 2009) da Súmula do STJ e no tema 243 de Recurso Repetitivo do STJ (2014):
Enunciado nº 375: “Não se considera fraude à execução a venda de bem imóvel, se não registrada a penhora no RGI, mesmo que já citado o devedor, prevalecendo a boa-fé do adquirente”.
Tema nº 243: “O reconhecimento da fraude de execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Meses depois da edição da Lei nº 13.097, no entanto, caiu um balde de água fria: entrou em vigor o Código de Processo Civil (Lei Federal nº 13.105, de 16 de março de 2015), que renovou a vigência da antiga disposição processual a respeito das hipóteses de fraude à execução:
“Art. 792. A alienação ou a oneração do bem é considerada fraude à execução:
(…) IV – quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência”.
O CPC/2015 não fez referências à boa-fé do comprador ou credor recebedor de garantia imobiliária, limitando-se, literalmente, a permitir a interpretação de que a existência de ação e a falta de outros bens do alienante seriam os requisitos necessários para se decretar a fraude à execução. Por se tratar de norma posterior à Lei n° 13.097, o mercado imobiliário (e de crédito) logo desistiu da doce ilusão de aferir os riscos do negócio imobiliário com base, apenas e tão somente, na certidão de matrícula.
Eis que surge a Lei Federal nº 14.382, de 27 de junho de 2022, resultante da conversão da Medida Provisória nº 1085, de 27 de dezembro de 2021, para renovar a expectativa por maior segurança jurídica nas negociações de alienação e de constituição de garantias envolvendo imóveis.
O art. 54 da Lei nº 13.097 – aquele que havia perdido força com a entrada em vigor do CPC/2015 – ganhou nova redação, revigorada, visando à criação de regras objetivas de interpretação de hipóteses em que se configuraria uma fraude à execução por venda ou constituição de imóveis em garantia. A boa expectativa do mercado voltou:
(a) os incisos II e IV foram atualizados para fazer menção ao Código de Processo Civil de 2015, deixando clara a mensagem de que tanto aquele diploma legal quanto a Lei nº 13.097 podem coexistir de forma harmônica:
“Art. 54. Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações:
(…) II – averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, de que a execução foi admitida pelo juiz ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos no art. 828 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil);
(…) IV – averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso IV do caput do art. 792 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”.
(b) e a grande novidade foi o acréscimo do parágrafo 2º, que dispensou a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais para o reconhecimento da validade de alienação de imóveis ou para a caracterização da boa-fé do comprador:
“§2º Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos a que se refere o caput deste artigo ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente de imóvel ou beneficiário de direito real, não serão exigidas:
I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985; e
II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais”.
Ou seja, a nova redação do art. 54 da Lei n° 13.097, em especial o § 2º, dispensou, literalmente, a obtenção prévia de certidões forenses em operações de compra e venda imobiliária ou de constituição de garantias. Se essa nova disposição legal for mesmo aplicada, um novo paradigma poderá ser criado na análise jurídica de negócios imobiliários. Exemplo:
(a) se o alienante figurar, como réu, em processo judicial, e tal ato for capaz de reduzi-lo à insolvência, estará preenchido um dos requisitos da fraude à execução;
(b) deverá, no entanto, ser preenchido um segundo requisito: a existência de constrição judicial registrada na certidão de matrícula;
(c) na ausência da penhora registrada, a venda ou a constituição da garantia serão eficazes.
Mas é necessário conter a empolgação. É a jurisprudência, inevitavelmente, que consolidará ou não esse possível novo marco nos mercados imobiliários e de crédito. E a ocorrência de flagrantes abusos, demonstrativos de evidências de conluio entre vendedores e compradores de imóveis, poderá manter a pertinência de se analisar os riscos nos negócios imobiliários com os rigores atuais, inclusive, mediante pesquisas forenses, ao menos até que a aplicação dessas novas disposições legais amadureça.
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