Reclamação no STF: contratação de trabalhadores, terceirização e “pejotização”

21/03/2024

Por Bianca Moreira da Silva

A contratação de trabalhadores por meio de pessoa jurídica, conhecida como “pejotização”, foi por muito tempo rechaçada pela Justiça do Trabalho, sob o entendimento de que a prática serviria apenas para mascarar as relações de emprego e burlar a legislação trabalhista e tributária.

Contudo, conforme elucidado em artigo de autoria do advogado Thiago Albertin Gutierre, este cenário tem experimentado mudanças significativas com o avanço na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente após os entendimentos fixados no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324 e do Tema 725 de repercussão geral, pelos quais a Suprema Corte: (i) declarou constitucional a terceirização de serviços na atividade-meio e na atividade-fim das empresas e (ii) entendeu ser lícita “qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”.

Pejotização e Terceirização

Inicialmente, destaque-se a distinção entre os conceitos de terceirização e pejotização. A terceirização, disciplinada na Lei nº 6.019/1974, é uma forma de contratação em que uma empresa contratante (tomadora) contrata uma empresa prestadora (terceirizadora) para a prestação de serviços. A empresa prestadora, por sua vez, contrata, dirige e remunera diretamente os empregados. Há, assim, uma relação triangular entre essas três partes.

Em contrapartida, a pejotização refere-se à contratação de trabalhadores por meio de pessoas jurídicas. Na pejotização não há uma relação triangular. A contratação se dá entre o contratante e a PJ – que, na prática, pode ser o próprio executor do trabalho.

Reclamação no Supremo Tribunal Federal (STF)

A reclamação, por determinação constitucional expressa, tem como finalidade preservar a competência do STF e garantir a autoridade de suas decisões, conforme prevê o artigo 102, inciso I, alínea “l”, além de assegurar a estrita observância de preceito constante em enunciado de Súmula Vinculante, nos termos do artigo 103-A, § 3º, ambos da Constituição Federal.

Embora já prevista na legislação anterior, a reclamação ganhou destaque no atual Código de Processo Civil, atuando como meio de assegurar a observância da jurisprudência vinculante dos Tribunais Superiores, visando a criação de um sistema de precedentes no processo civil brasileiro. Nesse contexto, o CPC passou a prever, além das hipóteses diretamente depreendidas do texto constitucional (art. 988, I, II e III), o cabimento da reclamação para garantir a “observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência” (artigo 988, IV).

Ressalte-se que a reclamação é medida excepcional, seja pela vedação de sua utilização como sucedâneo de ação rescisória (art. 988, § 5º, I), seja pela exigência de prévio esgotamento das instâncias ordinárias, no caso de reclamação fundada na inobservância de tese fixada em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida (art. 988, § 5º, II).

Reclamação como mecanismo para validar a pejotização e a terceirização

Um estudo conduzido pela FGV Direito SP em 2023 revelou que o STF tem legitimado a contratação de trabalhadores por meio de modalidades alternativas ao tradicional vínculo de emprego, bem como que a reclamação é utilizada estrategicamente para validar tais práticas [1].

Os dados são elucidativos: até agosto de 2023, foram proferidas 167 decisões monocráticas em reclamações sobre o tema, e em 80 delas as decisões da Justiça do Trabalho, que haviam reconhecido o vínculo empregatício, foram cassadas pelo STF, o que representa um significativo índice de 48%.

Esse índice é sobremaneira relevante, especialmente porque as demais reclamações tiveram seguimento negado por questões formais. A Corte Suprema, entre outros critérios, entendeu que não era o momento apropriado para ajuizamento da reclamação, por não haver acórdão de segunda instância ou do Tribunal Superior do Trabalho.

Os fundamentos que prevalecem nas reclamações e nos respectivos acórdãos são, notadamente, o entendimento fixado na ADPF 324 e no Tema 725 de repercussão geral. A corroborar, em 07/12/2023, a Reclamação 63.491, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que versava sobre decisão da Justiça do Trabalho que reconhecera vínculo empregatício entre médico beneficiário e hospital, foi julgada procedente sob o fundamento de que houve inobservância da autoridade do STF e do entendimento fixado pela Suprema Corte quanto à constitucionalidade de diversos modelos de prestação de serviços no mercado de trabalho. Vejamos:

“RECLAMAÇÃO. DIREITO DO TRABALHO. TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS PARA CONSECUÇÃO DE ATIVIDADE-FIM. ALEGAÇÃO DE AFRONTA À AUTORIDADE DA DECISÃO PROFERIDA POR ESTA SUPREMA CORTE NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 324. OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. RECLAMAÇÃO QUE SE JULGA PROCEDENTE.

 

[…] Verifico que a presente reclamação tem como fundamento principal a alegação de má-aplicação das teses vinculantes firmadas nos julgamentos do RE 958.252 – Tema-RG 725 e da ADPF 324.

 

Trata-se de precedentes nos quais esta Corte declarou a constitucionalidade da terceirização pelas empresas privadas, tanto de atividades-meio quanto de atividades-fim, e, portanto, a não configuração de relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada, ressalvando-se a existência de responsabilidade subsidiária da empresa tomadora.

 

Nesse cenário, o cotejo analítico entre a decisão reclamada e os paradigmas invocados revela ter havido a inobservância da autoridade da decisão deste Supremo Tribunal Federal, uma vez que o juízo reclamado declarou a existência de vínculo empregatício entre a empresa reclamante e o médico contratado, desconsiderando entendimento fixado pela Corte que contempla, a partir dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, a constitucionalidade de diversos modelos de prestação de serviço no mercado de trabalho.

 

Destarte, entendo que, ao afastar a terceirização de atividade-fim por ‘pejotização’, reconhecendo o vínculo empregatício com a empresa reclamante, no caso sub examine, o acórdão reclamado violou a autoridade da decisão proferida por esta Corte na ADPF 324.”

São inúmeras – e recentes – as decisões do STF nesse mesmo sentido. A título de exemplo:

RECLAMAÇÃO. ALEGADO DESCUMPRIMENTO DA DECISÃO PROFERIDA NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 958.252, TEMA 725. AUSÊNCIA DE ESGOTAMENTO DE INSTÂNCIA NA ORIGEM. CONTRARIEDADE AO DECIDIDO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL N. 324/DF, NA AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE N. 48 E NAS AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE NS. 3.961 E 5.625. PRECEDENTES. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE.” (Reclamação 60.768. Relatora Ministra Cármen Lúcia. Julgada em 10/07/2023).

“Trata-se de reclamação, com pedido liminar, ajuizada por Tim S.A. em face de decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região proferida nos Autos nº 1001529-54.2021.5.02.0702.

 

[…] O Plenário do STF realizou o julgamento conjunto da ADPF 324, sob a minha relatoria, e do RE 958.252, Rel. Min. Luiz Fux, paradigma do Tema 725 da repercussão geral, feitos cujo objeto comum era a discussão acerca da constitucionalidade da terceirização de mão de obra no Brasil. Na ADPF 324, prevaleceu a tese segundo a qual ‘1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993’.

 

No RE 958.252, fixou-se tese ligeiramente mais ampla, no seguinte sentido: ‘É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante’.

 

Dessa forma, a decisão reclamada ofendeu o decidido nos paradigmas invocados, nos quais se reconheceu a licitude de outras formas de organização da produção e de pactuação da força de trabalho. Nesse sentido, confiram-se reclamações sobre a matéria: Rcls 58.104-AgR e 57.391-AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes; e Rcl 56.982- AgR, Relª. Minª. Cármen Lúcia.” (Reclamação 60.654. Rel. Ministro Roberto Barroso. Julgado em 26/07/2023.)

Conclusão

O notável crescimento de reclamações no STF que versam sobre a constitucionalidade da terceirização e de outras formas de contratação diversas ao contrato de emprego é, sem dúvida, impulsionado pela tese fixada no julgamento da ADPF 324 e do Tema 725 de repercussão geral.

Além disso, o posicionamento adotado pela Suprema Corte no julgamento das reclamações revela uma clara tendência em reconhecer outras formas de prestação de serviços para além da CLT, o que certamente estimulará o ajuizamento de novas reclamações.

Nesse contexto, imperioso destacar as palavras do Ministro Roberto Barroso, no julgamento da Reclamação 60.652, para quem os valores que norteiam suas decisões que reconhecem a regularidade de outras formas de contratação são os seguintes:

(i) garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição para as relações de trabalho;

(ii) preservação do emprego e aumento da empregabilidade;

(iii) formalização do trabalho, removendo os obstáculos que levam à informalidade;

(iv) melhoria da qualidade geral e da representatividade dos sindicatos;

(v) valorização da negociação coletiva;

(vi) desoneração da folha de salários, justamente para incentivar a empregabilidade; e,

(vii) fim da imprevisibilidade dos custos das relações de trabalho em uma cultura cuja regra seja propor reclamações trabalhistas ao final da relação de emprego.

É importante ter em mente, no entanto, que o entendimento consolidado pelo STF não implica na impossibilidade de reconhecimento do vínculo empregatício, sendo certo que a competência da Justiça do Trabalho para analisar provas, por exemplo, permanece indene. Cada caso concreto deve ser analisado de acordo com as suas peculiaridades, de forma a preservar o direito das partes e a aplicação escorreita da lei, especialmente do artigo 3º da CLT, que prevê que, para caracterização da relação de emprego, é necessária a comprovação concomitante da pessoalidade, da não eventualidade, da onerosidade e da subordinação jurídica.

 

[1] Estudo realizado pela FGV Direito SP. Tema: Terceirização e Pejotização no STF: Análise das Reclamações Constitucionais. Acesse aqui.

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