No âmbito do Direito Contratual, a autonomia da vontade é a liberdade concedida às partes contratantes para autorregularem seus interesses e as condições do negócio que pretendem entabular. No entanto, é importante destacar que essa liberdade não é absoluta, encontrando limites nas disposições legais aplicáveis e na necessidade de se observar a boa-fé objetiva, a fim de garantir a equidade na relação contratual.

Em meio a esse espírito de liberdade contratual, a Justiça de Minas Gerais recentemente se deparou com uma situação na qual um oficial de cartório se recusou a registrar um pacto antenupcial que previa uma multa de R$ 180 mil em caso de infidelidade conjugal.

O pacto antenupcial encontra sua base legal no artigo 1.639 do Código Civil brasileiro, que estabelece a liberdade dos nubentes em pactuar sobre seus bens antes da celebração do casamento. Trata-se de um contrato firmado entre o casal antes da união matrimonial, com o propósito de estabelecer as disposições patrimoniais que nortearão o casal durante o casamento e em caso de dissolução da união.

A juíza Maria Luiza de Andrade Rangel Pires, da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte, ao analisar a pretensão do casal de fixar multa para o caso de infidelidade, reconheceu a validade do documento, sob o fundamento de que “[…] embora para muitos soe estranha, porque já se inicia uma relação pontuada na desconfiança mútua, é fruto da liberdade que os nubentes têm de regular como se dará a relação deles, certo que o dever de fidelidade já está previsto no Código Civil Brasileiro, servindo a referida cláusula”.

Apesar de causar estranheza, a previsão constante do pacto antenupcial do casal de Minas Gerais não é tão incomum quanto se imagina. Nos países cujo sistema jurídico é o common law [1], como os Estados Unidos, muitas celebridades notáveis, como Justin Timberlake e Jessica Biel, optaram por incluir em seu acordo pré-nupcial cláusula que previa o pagamento de multa em caso de infidelidade, em valor que pode superar milhões de reais [2]. De forma semelhante, o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, e sua esposa, Priscilla Chan, fizeram constar em acordo pré-nupcial uma disposição que determina que Zuckerberg dedique no mínimo 100 minutos de atenção semanal à esposa [3]. A socialite Kim Kardashian e o rapper Kanye West também assinaram um acordo pré-nupcial que estabelecia que a socialite receberia 1 milhão de dólares relativo a cada ano de casamento, em caso de divórcio, com limite máximo de 10 milhões [4].

Com a crescente valorização da autonomia privada e da liberdade contratual no ordenamento jurídico brasileiro, torna-se cada vez mais plausível que, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, o pacto antenupcial possa regulamentar questões que vão além das tradicionais, como, por exemplo, a divisão de tarefas domésticas, a privacidade nas redes sociais, questões relativas à educação dos filhos e indenização por infidelidade, como no caso aqui tratado – temas que têm ganho cada vez mais relevância no contexto social contemporâneo.

Entretanto, é de extrema importância que as regras estipuladas respeitem a dignidade da pessoa humana e os valores sociais e morais da sociedade. Em nenhuma hipótese a autonomia privada pode ser vista como uma carta branca para se estipularem cláusulas abusivas ou contrárias à lei. É justamente essa a previsão contida no Enunciado 635 da VIII Jornada de Direito Civil: “o pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar”.

Como bem asseverado pela juíza da capital mineira, os casais têm autonomia para decidir o conteúdo do pacto antenupcial, devendo o Poder Público intervir o mínimo possível na esfera privada, desde que não violem os princípios da dignidade humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar.
Ao estipular cláusulas com previsão de multa em caso de traição no pacto antenupcial, por exemplo, é fundamental que os casais levem em consideração todas as nuances das relações familiares, incluindo suas subjetividades, particularidades, afetos e expectativas.

Para evitar mal-entendidos, é aconselhável que o casal defina de maneira clara e precisa o que consideram traição. Com as mudanças culturais e tecnológicas da era moderna, é importante estar ciente de que as percepções de traição podem variar entre diferentes casais. Por exemplo, alguns casais jovens podem considerar curtidas de fotos, conversas apagadas ou ocultas nas redes sociais, bem como a manutenção de aplicativos de relacionamento no celular, como traição.

É essencial que os casais discutam suas expectativas e estabeleçam limites claros de comportamento. Além disso, é recomendável que eles revejam periodicamente a cláusula de traição no pacto antenupcial (caso exista) e atualizem-na conforme necessário, para garantir que a cláusula reflita adequadamente suas atuais crenças e valores.

Por fim, ressalte-se que a elaboração do pacto antenupcial exige cautela e a assistência de um especialista no assunto, a fim de evitar possíveis invalidações ou inadequações em relação à legislação vigente. Por isso, é altamente recomendado buscar aconselhamento jurídico para garantir a elaboração adequada desse documento.

 

[1] O common law (direito comum) é um sistema jurídico utilizado em países de língua inglesa. Possui como principal característica ser baseado em precedentes criados a partir de casos jurídicos – e não em códigos.

[2] Notícia: Justin Timberlake pode perder fortuna por quebra de contrato pré-nupcial após suposta traição. Jornal O Globo. 06 de dezembro de 2019. Disponível em: https://revistamonet.globo.com/Celebridades/noticia/2019/12/justin-timberlake-pode-perder-fortuna-por-quebra-de-contrato-pre-nupcial-apos-suposta-traicao.html 

[3] PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Artigo: Pacto antenupcial e cláusulas existenciais. Conjur. 16 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out-16/processo-familiar-consideracoes-pacto-antenupcial-clausulas-existenciais 

[4] Notícia: Veja as regras mais polêmicas dos Acordos pré-nupciais dos famosos. Extra. Jornal O Globo. 21 de setembro de 2014. Disponível em: https://extra.globo.com/famosos/veja-as-regras-mais-polemicas-dos-acordos-pre-nupciais-dos-famosos-13987715.html

 

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