Impenhorabilidade do bem de família não é absoluta

23/03/2023

Por Bianca Moreira da Silva

A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei nº 8.009/1990, que tem como elemento fundamental a impenhorabilidade de imóvel residencial que se presta à moradia da entidade familiar, bem como as exceções a essa regra, contidas no rol do artigo 3º da referida lei, que admitem a penhora de modo excepcional, são temas há tempos debatidos nas Cortes Superiores brasileiras.

No decorrer dos anos, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), visando coibir a utilização indevida da proteção legal concedida ao bem de família e a prática de atos de “blindagem patrimonial” por parte de devedores, vem mitigando a regra geral de impenhorabilidade, com base no princípio da boa-fé e no direito à tutela executiva.

Ou seja, embora legalmente garantida, a proteção ao bem de família deve ser examinada à luz da boa-fé do devedor, de maneira a evitar o abuso do direito e a aplicação desmedida deste instituto, de modo tal que inviabilize o direito do credor de satisfazer o seu crédito.

Foi nesse contexto, então, que o STJ consolidou orientação jurisprudencial no sentido de que “é possível a penhora de fração ideal de bem de família, desde que possível o desmembramento do imóvel sem a sua descaracterização” [1].

Obviamente que a Corte Superior, ao possibilitar a penhora parcial do bem para satisfação do credor, denotou prestígio ao direito à tutela executiva. Todavia, a importância da residência familiar não foi esquecida pelos julgadores, que, a toda evidência, se preocuparam em proteger o bem de família do devedor de boa-fé, garantindo, consequentemente, o direito constitucional à moradia e à dignidade da pessoa humana.

Ressalte-se que as decisões mencionam ser requisito para a penhora a divisibilidade do bem, característica essa presente em grandes porções de terras – como fazendas ou afins – e em imóveis com destinações distintas – como, por exemplo, quando um imóvel contém uma parte residencial e outra comercial –, cuja parte penhorada não inviabilizará a residência familiar, conforme precedente [2]:

“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. BEM DE FAMÍLIA DIVISÍVEL. PAVIMENTOS INDEPENDENTES. PENHORA DE FRAÇÃO IDEAL DO PAVIMENTO COMERCIAL. POSSIBILIDADE. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.

1. A orientação jurisprudencial das Turmas componentes da Segunda Seção desta Corte Superior é firme no sentido de que o imóvel indivisível protegido pela impenhorabilidade do bem de família deve sê-lo em sua integralidade, sob pena de tornar inócua a proteção legal.

2. Contudo, esta Corte possui também o entendimento de que é viável a penhora de parte do imóvel caracterizado como bem de família, quando desmembrável, e desde que este desmembramento não prejudique ou inviabilize a residência da família.

3. No caso dos autos, o acórdão recorrido consignou tratar-se de imóvel com destinações distintas e separadas uma da outra, situando-se a parte comercial no pavimento térreo e a residencial no pavimento superior, ficando caracterizada a possibilidade de penhora da fração do bem relativa à parcela de uso comercial. […]” (grifos nossos).

Por outro lado, como mencionado, a proteção sobre a integralidade do bem de família indivisível permanece incólume, tendo em vista que a jurisprudência do STJ possui firme entendimento no sentido de que é inviável a penhora de fração desses imóveis (como casas e apartamentos) [3]:

“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. […]. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. ACÓRDÃO ESTADUAL EM CONSONÂNCIA COM O ENTENDIMENTO DESTA CORTE. POSSIBILIDADE DE DESMEMBRAMENTO DO IMÓVEL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO DESPROVIDO.

1. “É possível a penhora de fração ideal de bem de família, nas hipóteses legais, desde que possível o desmembramento do imóvel sem sua descaracterização” (AgInt no REsp 1.663.895/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 30/9/2019, DJe de 7/10/2019)” (AgInt no AREsp 1.704.667/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 22/03/2021, DJe de 13/04/2021).

2. No caso, o Tribunal de Justiça, com arrimo no acervo fático-probatório carreado aos autos, concluiu pela inviabilidade da penhora de parcela de imóvel, considerado bem de família, uma vez que “(…) sua divisão acarretaria em diminuição considerável do valor e em prejuízo do uso a que se destina. Isso porque, não seria possível o uso independente da área de lazer por um terceiro que viesse a adquirir essa parte do bem“. A pretensão de alterar tal entendimento, considerando as circunstâncias do caso concreto, demandaria revolvimento de matéria fático-probatória, o que é inviável em sede de recurso especial.

3. Agravo interno desprovido.” (grifos nossos).

Conclui-se, assim, que a relativização da impenhorabilidade do bem de família pelo STJ e a demonstração de que tal instituto não é absoluto abriram caminhos para os Tribunais Estaduais reconhecerem a possibilidade de penhora de fração ideal de bem de família, desde que o seu desmembramento não inviabilize a residência familiar.

De todo modo, absolutamente necessário ressaltar que o imóvel que serve como lar possui proteção constitucional – corolário do direito à moradia – e deve ser preservado como concretização do dever do Estado de proteção à família.

 

[1] AgInt no REsp 1.663.895/PR, Rel. Ministro Marco Buzzi. Quarta Turma, julgado em 30/9/2019, DJe de 7/10/2019; AgInt no AREsp nº 1.704.667 – SP, Rel. Ministro Raul Araújo. Quarta Turma, julgado em 22/02/2021, DJe de 13/04/2021; AgInt no AREsp nº 1655356 – SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 19/04/2021, DJe de 26/04/2021.

[2] AgInt no AREsp 573.226/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, Quarta Turma, julgado em 02/02/2017, DJe 10/02/2017.

[3] AgInt no AREsp 1348093/SC. Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, Quarta Turma, julgado em 16/05/2022, DJe de 14/06/2022.

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