STF define: negociado prevalece sobre o legislado

26/10/2022

Por Eduardo Galvão Rosado

I. “Reforma trabalhista” e o que é “negociado prevalece sobre o legislado”?

O direito do trabalho é regulamentado, sobretudo, pela CLT e por diversas leis esparsas e é nesse contexto que os sindicatos têm papel muito importante, pois, por meio de acordos coletivos (que são aqueles celebrados no âmbito de determinada empresa) e de convenções coletivas (que são aquelas celebradas no âmbito de determinado setor), conseguem regulamentar outros direitos além daqueles legislados.

Para se ter ideia, por meio dos citados instrumentos coletivos, os sindicatos podem disciplinar novos direitos ou, ainda, “melhorar” e/ou adequar as condições de outros – já previstos em lei – de acordo com a realidade de determinada empresa e/ou categoria e, quando isso ocorre, podemos afirmar que o “negociado prevaleceu sobre o legislado” e que o princípio da autonomia privada coletiva (que é a liberdade que as empresas e os respectivos sindicatos têm para negociar e contratar) foi respeitado.

Justamente por essa razão (e porque a questão sempre foi objeto de muita celeuma) é que a “reforma trabalhista” (lei 13.467/2017) introduziu na CLT os artigos 611-A e 611-B que têm, respectivamente, as seguintes redações (cujos róis – inclusive – são taxativos):

Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre:
I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais;
II – banco de horas anual;
III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas;
IV – adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei nº 13.189, de 19 de novembro de 2015;
V – plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança;
VI – regulamento empresarial;
VII – representante dos trabalhadores no local de trabalho;
VIII – teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente;
IX – remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual;
X – modalidade de registro de jornada de trabalho;
XI – troca do dia de feriado;
XII – enquadramento do grau de insalubridade;
XIII – prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho;
XIV – prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo;
XV – participação nos lucros ou resultados da empresa”. (g/n)

 

Art. 611-B. Constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos:
I – normas de identificação profissional, inclusive as anotações na Carteira de Trabalho e Previdência Social;
II – seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário;
III – valor dos depósitos mensais e da indenização rescisória do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS);
IV – salário mínimo;
V – valor nominal do décimo terceiro salário;
VI – remuneração do trabalho noturno superior à do diurno;
VII – proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa
VIII – salário-família;
IX – repouso semanal remunerado;
X – remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% (cinquenta por cento) à do normal;
XI – número de dias de férias devidas ao empregado;
XII – gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal;
XIII – licença-maternidade com a duração mínima de cento e vinte dias;
XIV – licença-paternidade nos termos fixados em lei;
XV – proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;
XVI – aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei;
XVII – normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho;
XVIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas;
XIX – aposentadoria;
XX – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador;
XXI – ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho;
XXII – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador com deficiência;
XXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos;
XXIV – medidas de proteção legal de crianças e adolescentes;
XXV – igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso;
XXVI – liberdade de associação profissional ou sindical do trabalhador, inclusive o direito de não sofrer, sem sua expressa e prévia anuência, qualquer cobrança ou desconto salarial estabelecidos em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho;
XXVII – direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender;
XXVIII – definição legal sobre os serviços ou atividades essenciais e disposições legais sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade em caso de greve;
XXIX – tributos e outros créditos de terceiros;
XXX – as disposições previstas nos arts. 373-A, 390, 392, 392-A, 394, 394-A, 395, 396 e 400 desta Consolidação”. (g/n).

Como se denota acima, o artigo 611-A traz uma série de direitos que podem ser negociados por meio de instrumentos coletivos e que sempre prevalecerão sobre a lei; já o artigo 611-B prevê direitos que podem ser negociados, mas, entretanto, desde que em condições mais benéficas para o trabalhador, ou seja, em face do chamado patamar mínimo civilizatório, os referidos direitos jamais poderão ser reduzidos com fulcro, inclusive, no princípio da vedação do retrocesso social, insculpido no caput, do artigo 7º da CF, in verbis:

“Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” (g/n).

Ocorre que, mesmo após a “reforma trabalhista”, as discussões não se encerraram chegando o tema (1046) até o STF que teve de apreciar, em suma, acerca da validade e aplicabilidade dos instrumentos coletivos em detrimento à lei e, via de consequência, sobre a constitucionalidade dos artigos 611-A e 611-B da CLT.

II. O que o STF decidiu (sobre o tema 1046)? Agora o negociado sempre prevalecerá sobre a lei?

De início, é importante destacar que, ao contrário do que muitos imaginam, o STF já havia enfrentado o tema no ano de 2016 (portanto, antes da “reforma trabalhista”) quando, no julgamento do RE nº 895.759/PE, permitiu que o instrumento coletivo prevalecesse sobre a lei – retirando o direito dos trabalhadores às horas in itinere daquele caso específico – mas, contudo, com os seguintes balizamentos: “a) reconhecimento constitucional da validade dos acordos e convenções coletivas como instrumentos de prevenção e de autocomposição de conflitos trabalhistas; b) percepção de que no âmbito do direito coletivo não se vislumbra a assimetria característica da relação individual de trabalho; c) a constatação de que concedidas outras vantagens que compensam a supressão do pagamento das horas in itinere; d) falta de questionamento acerca da validade da votação da Assembleia Geral, fazendo-se presumir legítima a manifestação de vontade proferida pela entidade sindical”. (g/n).

Como se pode notar, o STF permitiu na ocasião “a prevalência do negociado sobre o legislado”, mas sob a condição principal de se garantir aos trabalhadores “outras vantagens” o que, também, foi expressamente suprimida pela “reforma trabalhista”, conforme se extraia da redação do §2º, do artigo 611-A, da CLT:

“§ 2o A inexistência de expressa indicação de contrapartidas recíprocas em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho não ensejará sua nulidade por não caracterizar um vício do negócio jurídico”. (g/n).

Adentrando no ponto nevrálgico deste artigo, salienta-se que no julgamento do ARE 1.121.633, a referida questão – “outras vantagens” – também foi objeto de análise pelo plenário lembrando, todavia, que em 01/08/2019, o Ministro Relator, Gilmar Mendes, determinou a suspensão nacional de todos os processos envolvendo o Tema 1046 (“negociado sobre o legislado”), como autoriza o artigo 1.035, §5º, do CPC, in verbis:

“Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.

(…)

§ 5º Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional”.

Já em 02/06/2022, após anos de paralisação, o Supremo, por maioria de votos, decidiu finalmente a questão com os seguintes fundamentos:

“O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 1.046 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Edson Fachin e Rosa Weber. Em seguida, por unanimidade, foi fixada a seguinte tese: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”. Ausentes, justificadamente, o Ministro Luiz Fux (Presidente), impedido neste julgamento, e o Ministro Ricardo Lewandowski. Presidiu o julgamento a Ministra Rosa Weber, Vice- Presidente. Plenário, 2.6.2022. Presidência da Senhora Ministra Rosa Weber, Vice-Presidente. Presentes à sessão os Senhores Ministros Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Nunes Marques e André Mendonça. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Luiz Fux– (Presidente) e Ricardo Lewandowski. Procurador-Geral da República, Dr. Antônio Augusto Brandão de Aras. Carmen Lilian Oliveira de Souza Assessora-Chefe do Plenário. (RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 1.121.633, Data de Julgamento: 02/06/2022, STF, Relator: Ministro Gilmar Mendes)”. (g/n).

Desse modo, o STF acabou por declarar constitucionais os artigos inseridos pela “reforma trabalhista” (611-A e 611-B da CLT) e, com isso, enaltecer o princípio da autonomia privada coletiva permitindo, assim, que as partes consigam estipular, mediante o devido processo negocial, as normas que regerão as suas respectivas empresas e/ou categorias, mas “desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”.

Outra consequência decorrente da referida decisão foi a retomada do curso de todos os processos que estavam suspensos valendo destacar, inclusive, que já existem diversas decisões (em 1ª e 2ª instâncias) sobre o tema. Vejamos:

TEMA 1046. INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS AUTÔNOMAS DERIVADAS DE NEGOCIAÇÕES COLETIVAS. PREVALÊNCIA DO NEGOCIADO SOBRE O LEGISLADO. O Excelso STF, apreciando o tema 1.046 de repercussão geral, fixou a seguinte tese, verbis: “São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis”. Logo, válida a norma coletiva que afasta a percepção de horas in intinere.” (RECURSO ORDINÁRIO ROT 0010953-28.2020.5.03.0094, Data de Julgamento: 05/07/2022, TRT 3 MG, Relator: ANTÔNIO GOMES DE VASCONCELOS, data da publicação 15/07/2022). (g/n).

 

“NORMAS COLETIVAS – ART. 611-A, DA CLT – PREVALÊNCIA DO NEGOCIADO SOBRE O LEGISLADO – As partes, em seus ajustes coletivos, podem tratar dos mais diversos temas, desde que respeitem os limites legais e constitucionais dos direitos assegurados aos empregados. Segundo o art. 611-A, da CLT prevalece o negociado sobre o legislado, à medida que se confere as normas coletivas força normativa.” (TRT-1 – RO: 0100171252021501034, Relator: ALBA VALERIA GUEDES FERNANDES DA SILVA, Data de Julgamento: 03/06/2022, Décima Turma, Data de Publicação: DEJT 2022-06-21).

 

“ARTIGO 611-A DA CLT. PREVALÊNCIA DO NEGOCIADO SOBRE O LEGISLADO. Extrai-se, do disposto no artigo 611-A da CLT vigente, o princípio de prevalência do negociado, por meio de acordo ou convenção coletiva de trabalho, sobre o legislado, exceto se o objeto negociado for ilícito.” (TRT-2 10001043820215020040 SP, Relator: LUIS AUGUSTO FEDERIGHI, 17ª Turma – Cadeira 3, Data de Publicação: 07/07/2022).

Conclusão: o negociado passou, sim, a ser prestigiado, e sem nenhuma exigência de se estipular “outras vantagens” na hipótese de supressão e/ou alteração de determinado direito, mas não prevalecerá de forma absoluta sobre o legislado e, nesse contexto, os envolvidos, para não incorrerem em acordos eivados de nulidades, deverão se ater às disposições constitucionais, além do patamar mínimo civilizatório previsto no artigo 611-B da CLT.

 

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