Devolução de mercadorias e os reflexos em operações de antecipação

17/08/2022

Por Marcelo Augusto de Barros

Uma empresa de factoring, uma securitizadora de créditos comerciais ou um fundo de investimento em direitos creditórios (FIDC) adquire um recebível representado por duplicata de venda mercantil. A duplicata é um título causal, isto é, está ligada a um negócio subjacente, como a compra e venda de uma determinada mercadoria. Essa mercadoria é devolvida pelo sacado meses após, sem justificativa aparente.

Nessa hipótese, a duplicata pode ser protestada e cobrada pelo adquirente do crédito (endossatário)? A mercadoria poderia ser devolvida a qualquer momento? A devolução pressupõe a existência de algum vício? O endossatário da duplicata deve se submeter aos acordos entre endossante (ou cedente) e sacado? São perguntas comuns no dia-a-dia das operações de antecipação. Tema subjetivo, portanto, que requer análise de caso a caso.

A seguir, algumas conclusões baseadas em lei e julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça que podem auxiliar o diagnóstico jurídico:

(1) se houver aceite na duplicata, o título se torna abstrato, isto é, vale por si só, sem depender da eficácia do negócio subjacente, à semelhança de cheque e nota promissória. Noutras palavras, a eventual devolução de mercadorias não impede o protesto e a cobrança da duplicata pelo endossatário (factoring, securitizadora ou FIDC);

A esse respeito, já se decidiu:

“CIVIL E PROCESSUAL. AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. SUJEIÇÃO AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 2/STJ. AÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE TÍTULOS. CONTRATO DE FACTORING. CESSÃO POR ENDOSSO TRANSLATIVO PELA SACADORA. DUPLICATAS PREVIAMENTE ACEITAS. CIRCULAÇÃO E ABSTRAÇÃO DO TÍTULO DE CRÉDITO APÓS O ACEITE. OPOSIÇÃO DE EXCEÇÕES PESSOAIS. NÃO CABIMENTO.
[…] 2. A duplicata mercantil, apesar de causal no momento da emissão, com o aceite e a circulação adquire abstração e autonomia, desvinculando-se do negócio jurídico subjacente, impedindo a oposição de exceções pessoais a terceiros endossatários de boa-fé.
3. Hipótese em que a transmissão das duplicatas à empresa de factoring operou-se por endosso translativo pela sacadora, sem possibilidade de questionamento a respeito da boa-fé da endossatária, portadora do título de crédito, ou a respeito do aceite aposto pelo preposto da devedora.
4. Aplicação das normas próprias do direito cambiário, relativas ao endosso, ao aceite e à circulação dos títulos, que são estranhas à disciplina da cessão civil de crédito.”

(STJ; AgInt no Recurso Especial 1668590 – SP; Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti; Órgão Julgador: Quarta Turma; Data do Julgamento: 07/12/2020)

 

“APELAÇÃO CÍVEL. Ação declaratória de inexigibilidade de débito. Protesto. Duplicatas mercantis. Sentença de Improcedência. Inconformismo da Autora. Não acolhimento. Compra e venda mercantil. Aceite das mercadorias comprovado. Apelante que não trouxe aos Autos prova efetiva da alegada avaria, conforme prevê o Artigo 8º da Lei nº 5.474/68. Devolução a destempo (Artigo 7º da Lei nº 5.474/68) que importa em aceite presumido. Duplicatas que se tornam título autônomo e abstrato, desvinculado do negócio jurídico subjacente. Circulação das cártulas após o aceite. Contrato de factoring. Cessão por endosso translativo pela sacadora. Oposição de exceções pessoais. Descabimento, conforme prevê o Artigo 916 do Código Civil. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. Endossaria de boa-fé, que comprova ter comunicado a cessão (Artigo 373, II do Código de Processo Civil). Ausente prova de impugnação pela sacada. Precedentes deste E. Tribunal. Sentença mantida. RECURSO DESPROVIDO.”

(TJSP; Apelação Cível 0009913-31.2012.8.26.0278; Relator (a): Penna Machado; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itaquaquecetuba – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/07/2022; Data de Registro: 26/07/2022)

(2) se não houver aceite, mas existir nota fiscal, canhoto e notificação ao sacado, a devolução das mercadorias pode, em tese, prejudicar a cobrança da duplicata, mas alguns pontos merecem atenção:

(a) a mercadoria deve apresentar vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor (Código Civil, art. 441);

(b) o sacado tem o prazo de 30 dias, contados da entrega efetiva, para a devolução das mercadorias (Código Civil, art. 445);

(c) o sacado deverá provar que devolveu a mercadoria por meio de nota fiscal de devolução, com concordância do endossante (vendedor);

(d) o sacado deverá demonstrar que, ao receber a notificação do endossatário, ressalvou que faria a conferência das mercadorias.

Quando o sacado responde à notificação, dando por firme o negócio, sem fazer nenhuma ressalva, deve-se interpretar que, no mínimo, o endossatário foi induzido a erro, caso algum vício na mercadoria seja apurado depois. Ou seja, quando ficar claro que o adquirente do crédito, portador da duplicata, não agiu de má-fé ao adquirir o título, eventuais vícios da relação sacado/endossante não prejudicarão a cobrança.

Defendendo, justamente, esses pontos mencionados, nosso escritório tem obtido êxito em ações judiciais movidas por sacados, conforme os seguintes julgados, todos proferidos em processos com nossa atuação:

“AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO DESPROVIDA. DUPLICATAS MERCANTIS. FATURIZAÇÃO. SACADA QUE MANIFESTOU CIÊNCIA DA OPERAÇÃO DE FACTORING E CONFIRMOU RECEBIMENTO DAS MERCADORIAS. DEVOLUÇÃO TARDIA DAS MERCADORIAS À CEDENTE. VALIDADE E EXIGIBILIDADE DOS TÍTULOS RECONHECIDA. Cuida-se de ação declaratória de inexigibilidade de duplicatas promovida em face da sacadora e da empresa de factoring. Títulos negociados em operação de faturização. A conclusão de validade e exigibilidade dos títulos não merece reparos. Primeiro, a autora teve ciência e anuência expressa da operação de faturização, isto é, cessão do crédito representado pelas duplicatas. Isto é, ciente de que havia aquela negociação, deveria agir com as cautelas necessárias e de acordo com a boa-fé objetiva. Na troca de e-mails entre a autora e a empresa de factoring, verificou a confirmação inclusive da entrega da mercadoria. E segundo, mesmo ciente daquela negociação, a autora recebeu os produtos, armazenando-os por longo período para alegar, em momento posterior, que o produto estava com vício. Recebeu o produto em 07/02/2018 (fl. 17) para reclamar e fazer sua devolução somente em 04/04/2018 (fl. 19), quase dois meses depois. Inadmissível que a autora, diante de um produto usado para seu insumo (produção, conforme admitido na apelação, fl. 704) não tenha constatado, de pronto, sua inadequação. A conduta da sacada autora deve ser analisa à luz da boa-fé objetiva e de suas obrigações legais e contratuais. Se admitiu para empresa de factoring ré que havia realizado compra do produto com seu recebimento, sem qualquer ressalva quanto à necessidade da conferência de adequação, criou para primeira a certeza de que não havia qualquer vício a comprometer a transação que deu origem ao faturamento (duplicatas). Aliás, na forma do artigo 445 do CC, a autora tinha o prazo de 30 dias para enjeitar. E não se cuidava de um vício oculto ou que pudesse ser conhecido só depois, a partir da prova dos autos. Era um insumo usado pela autora, que detinha pleno conhecimento técnico sobre o produto. Sendo assim, irrelevante ao desfecho do recurso o relatório técnico produzido pela corré (fl. 22), prova essa que se deu sem indicação de data e com identificação precisa da remessa – isto é, sequer havia certeza que se referia à transação que resultou nas duplicatas impugnadas. Sentença confirmada por seus próprios fundamentos, nos termos do artigo 252 do Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça. Ação improcedente. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO IMPROVIDO.”

(TJSP; Apelação Cível 1044191-80.2018.8.26.0100; Relator (a): Alexandre David Malfatti; Órgão Julgador: 17ª Câmara de Direito Privado; Foro de Sorocaba – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/06/2022; Data de Registro: 28/06/2022)

 

“DUPLICATA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE. A ré recebeu as duplicatas por meio de endosso-translativo, em razão de contrato de faturização, celebrado com as vendedoras. Ao recebê-las, a endossatária foi cautelosa e deu ciência à sacada (autora) a respeito da cessão do crédito, que não impugnou a validade das cártulas. Ao contrário, confirmou expressamente a higidez dos negócios subjacentes. Houve aceite dos títulos, diante da ausência de qualquer impugnação à cessão do crédito ou manifestação de recusa no prazo previsto no art. 7º da Lei nº 5.474/1968. A apelante GFM Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Multicrédito é endossatária de boa-fé, contra a qual são inoponíveis as exceções pessoais decorrentes do posterior desfazimento do negócio jurídico subjacente. Tem razão ao argumentar que a duplicata, uma vez posta em circulação e endossada a terceiro de boa-fé, não assiste ao devedor, após conferir seu aceite, o direito de escusar-se ao cumprimento da obrigação com fundamento em questões atinentes à relação de origem. Em suma, o débito estampado nas duplicatas impugnadas na inicial é exigível em relação à apelada Rubberfran Comércio Indústria Importação e Exportação de Produtos Químicos Ltda ME, ressalvado o seu direito de regresso em face das sacadoras dos títulos. Precedentes na 12ª Câmara de Direito Privado. Apelação provida. Ação improcedente. Inversão da sucumbência.”

(TJSP; Apelação Cível 1029414-93.2018.8.26.0196; Relator (a): Sandra Galhardo Esteves; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro de Franca – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/07/2022; Data de Registro: 21/07/2022)

 

“APELAÇÃO – AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO – IMPUGNAÇÃO À CAUSA SUBJACENTE DE DUPLICATAS ENDOSSADAS EM OPERAÇÃO DE FATURIZAÇÃO (FACTORING). LEGÍTIMA EXPECTATIVA CRIADA NA CESSIONÁRIA ACERCA DA REGULARIDADE DO FATO GERADOR DO CRÉDITO ADQUIRIDO. CIRCUNSTÂNCIA CONDICIONANTE DA CELEBRAÇÃO DO NEGÓCIO. CONFIRMAÇÃO DE RECEBIMENTO DAS MERCADORIAS QUE, NA ESPÉCIE, REFORÇA A IRRELEVÂNCIA DA CAUSA SUBJACENTE ÀS CÁRTULAS DEPOIS DA SUA CIRCULAÇÃO, OBSERVADA A NATURAL ABSTRAÇÃO E AUTONOMIA DAS OBRIGAÇÕES CAMBIAIS – INOPONIBILIDADE DAS EXCEÇÕES À FATURIZADORA-ENDOSSATÁRIA, TERCEIRA DE BOA-FÉ, QUE SE SUB-ROGOU NO CRÉDITO RESPECTIVO – ART. 916 DO CC – SENTENÇA REFORMADA – DECRETO DE IMPROCEDÊNCIA QUE SE IMPÕE. – RECURSO PROVIDO.”

(TJSP; Apelação Cível 1036017-14.2020.8.26.0100; Relator (a): Edgard Rosa; Órgão Julgador: 22ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 13ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/01/2021; Data de Registro: 22/01/2021)

Não significa que o sacado assumirá os prejuízos de um negócio não concretizado, mas sim que, devido a sua postura, restar-lhe-á pagar o título e buscar, em regresso, seus direitos contra o endossante. É o que se interpreta do art. 916 do Código Civil: “Art. 916. As exceções, fundadas em relação do devedor com os portadores precedentes, somente poderão ser por ele opostas ao portador, se este, ao adquirir o título, tiver agido de má-fé”.

Mesmo na hipótese de o sacado receber a notificação e não responder, podemos também interpretar que o silêncio serviu como reconhecimento tácito do negócio efetuado. Vale, aqui, o disposto no art. 111 do Código Civil: “O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”.

Relevante, portanto, que o texto da notificação ao sacado alerte para que qualquer objeção quanto a vício, atraso, quantidade, qualidade ou defeito dos produtos que deram origem à duplicata sejam informados em prazo razoável, valendo o silêncio como anuência da perfeita regularidade e liquidez do título.

Frisamos que o bom senso e boa-fé das partes terão peso essencial na resolução de conflitos. Troca de e-mails, ligações telefônicas, relação obscura entre sacado e endossante, excessivo prazo de devolução das mercadorias, confirmação da notificação sem ressalva, tudo isso será levado em conta em eventual processo judicial.

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