CNJ reescreve a Lei 9.514 e impõe escritura pública para alienação fiduciária de imóveis

06/06/2024

Por Marcelo Augusto de Barros

A Lei Federal nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, estabelece de maneira inequívoca a possibilidade de celebração de Contratos de Alienação Fiduciária de Imóveis em Garantia mediante instrumentos particulares:

“Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

 

§ 1o A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, NÃO SENDO PRIVATIVA DAS ENTIDADES QUE OPERAM NO SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade plena:

 

Art. 38. OS ATOS E CONTRATOS REFERIDOS NESTA LEI OU RESULTANTES DA SUA APLICAÇÃO, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, PODERÃO SER CELEBRADOS por escritura pública ou POR INSTRUMENTO PARTICULAR COM EFEITOS DE ESCRITURA PÚBLICA.”

Há longos anos, o mercado de crédito privado tem adotado o instrumento particular de alienação fiduciária para a constituição de garantias imobiliárias, inclusive com o uso de assinaturas eletrônicas. Esse método tem sido essencial para agilizar a liberação de empréstimos e financiamentos. Diversas entidades, como Fundos de Investimento em Direitos Creditórios, Fundos Imobiliários, Companhias Securitizadoras, empresas de fomento mercantil e fintechs de crédito não-financeiras, incluindo plataformas de crowdfunding, desenvolveram estruturas que permitem a negociação de créditos garantidos por imóveis sem a necessidade da onerosa e burocrática escritura pública, tudo expressamente autorizado por Lei.

Mas eis que o Conselho Nacional de Justiça decidiu alterar a Lei para impor a escritura pública. A garantia constitucional que assegura que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” aparentemente cedeu lugar ao capricho interpretativo de quem manda, mostrando que, às vezes, a lei é menos sobre o que está escrito e mais sobre quem interpreta, infelizmente.

Invocando uma “interpretação sistêmica”, o CNJ, em um processo administrativo (pedido de providências nº 0008242-69.2023.2.00.0000), decidiu que o uso de instrumentos particulares — previamente garantido por LEI a todos, inclusive àqueles que não operam no SFI — agora está limitado exclusivamente às entidades que atuam dentro do SFI.

Assim, o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial, uma norma infralegal regulamentar que, naturalmente, deveria ser subordinada hierarquicamente a uma Lei, acaba de redefinir a Lei nº 9.514. A alteração estabelece que o uso de instrumento particular em alienação fiduciária de imóvel agora é restrito exclusivamente a “entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário”:

“CAPÍTULO VI

 

Da Alienação Fiduciária em Garantia sobre imóveis

 

Seção I

 

Do Título

 

Art. 440-AN. A permissão de que trata o art. 38 da 9.514/1997 para a formalização, por instrumento particular, com efeitos de escritura pública, de alienação fiduciária em garantia sobre imóveis e de atos conexos, é restrita a entidades autorizadas a operar no âmbito do Sistema de Financiamento Imobiliário – SFI (art. 2º da Lei n. 9.514/1997), incluindo as cooperativas de crédito.

 

Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui outras exceções legais à exigência de escritura pública previstas no art. 108 do Código Civil, como os atos envolvendo:

 

I – Administradoras de Consórcio de Imóveis (art. 45 da Lei n. 11.795, de 8 de outubro de 2008);

 

II – Entidades integrantes do Sistema Financeira de Habitação (art. 61, § 5º, da Lei n. 4.380, de 21 de agosto de 1964.”

A afirmação de que o Código do CNJ modificou a Lei n° 9.514 não é irônica; realmente, com base nessa norma, os Cartórios de Registro de Imóveis em todo o Brasil agora deverão seguir a nova regra que restringe o uso do instrumento particular em alienação fiduciária. A fase do Poder Legislativo não é das melhores.

Para o futuro, os caminhos são tão claros quanto intrigantes:

(1) recorrer ao Supremo Tribunal Federal, apoiando-se no precedente estabelecido pelo julgamento da ADI n° 4412, que poderia delinear o cabimento do recurso;

(2) esperar que o Congresso ajuste a Lei n° 9.514, talvez reiterando explicitamente que o instrumento particular é válido para alienação fiduciária de imóveis por qualquer entidade, mesmo aquelas não vinculadas ao SFI — e aqui, com uma pitada de ironia, propondo que se “vede qualquer ‘interpretação sistêmica’” contrária; ou

(3) aceitar obedientemente a “Lei” conforme reinterpretada pelo CNJ, submetendo-se à nova ordem normativa.

Seguindo o Código do CNJ, uma Nota Comercial com garantia imobiliária agora requer escritura pública para formalizar a alienação fiduciária do imóvel utilizado como garantia. Igualmente, contratos de garantia imobiliária destinados a respaldar operações de cessão a FIDCs, companhias securitizadoras ou a empresas de factoring, assim como para garantir limites operacionais concedidos por fornecedores, ou até mesmo simples confissões de dívida, agora devem ser formalizados por escritura pública.

Quanto à Cédula de Crédito Bancário (CCB), teoricamente, não há alterações; qualquer instituição financeira autorizada pelo Banco Central, incluindo fintechs de crédito, operam dentro do SFI, conforme estabelecido pelo parágrafo único do art. 4º da Resolução CMN n° 4.676, de 31 de julho de 2018.

Quem realmente perde com isso? Sem dúvida, o mercado de crédito privado e, mais especificamente, aqueles que buscam crédito. Com essa nova exigência, os custos e o tempo para a liberação de empréstimos aumentarão consideravelmente, enquanto os montantes disponíveis para empréstimos inevitavelmente diminuirão — afinal, os custos da escritura pública precisam ser cobertos. Não surpreende, a propósito, que o Brasil figure na posição 127 no Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation, atrás de países como Nicarágua, Gabão e Burkina Faso, refletindo as barreiras burocráticas que continuam a obstaculizar nosso progresso econômico.

 

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