Sócio de sociedade limitada pode se retirar sem justificativa, diz STJ

19/04/2021

Por Marsella Medeiros Bernardes

Não são raras as vezes em que a existência e o agravamento de conflitos acaba levando ao desinteresse de algum dos sócios permanecer jungido ao negócio e, por consequência, à opção por exercer o direito de retirada.

Direito de retirada, em resumo, “é o direito do sócio de retirar-se da sociedade, por ato unilateral, levando consigo os fundos que somente lhe caberiam em caso de liquidação” [1].

Mas o direito de retirada deve ser exercido dependendo de uma série de fatores, como o tipo societário escolhido e as previsões legais correspondentes.

Em se tratando de uma sociedades simples – sociedades contratuais entre duas ou mais pessoas que têm por objeto a prestação de qualquer atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística, como, por exemplo, sociedades entre médicos, dentistas e advogados – a retirada do sócio pode ocorrer de duas maneiras distintas, dependendo do prazo de duração da sociedade:

  1. se por prazo indeterminado, qualquer sócio pode retirar-se mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de 60 dias, sem ser necessária nenhuma justificação, e
  2. se por prazo determinado, o sócio somente poderá retirar-se provando judicialmente a justa causa.

É o que dispõe o art. 1.029 do Código Civil:

“Art. 1.029. Além dos casos previstos na lei ou no contrato, qualquer sócio pode retirar-se da sociedade; se de prazo indeterminado, mediante notificação aos demais sócios, com antecedência mínima de sessenta dias; se de prazo determinado, provando judicialmente justa causa.”

Por outro lado, em se tratando de sociedade empresária limitada – tipo de sociedade empresária mais largamente adotada no País – o art. 1.077 do CC prevê que o direito de retirada deverá ser motivado por modificação do contrato social, incorporação ou transformação da sociedade, nos seguintes termos:

“Art. 1.077. Quando houver modificação do contrato, fusão da sociedade, incorporação de outra, ou dela por outra, terá o sócio que dissentiu o direito de retirar-se da sociedade, nos trinta dias subsequentes à reunião, aplicando-se, no silêncio do contrato social antes vigente, o disposto no art. 1.031 [que dispõe sobre a apuração e o recebimento dos haveres pelo sócio retirante]”.

Existe, porém, uma grande discussão jurisprudencial e doutrinária sobre a extensão do art. 1.077 do CC: a normal legal abarca todas as hipóteses em que o sócio pode se retirar da sociedade ou se trata de previsão meramente exemplificativa?

Essa discussão é relevante pois, em caso de omissão no capítulo do Código Civil destinado às sociedades limitadas, serão aplicadas as previsões que tratam das sociedades simples, nos termos do caput do art. 1.053 do CC:

“Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.”

É dizer, se for considerado que o art. 1.077 do CC não esgota as hipóteses de retirada do sócio das sociedades limitadas, deverá ser automaticamente aplicado o art. 1.029 da lei civil, que autoriza que o sócio se retire de uma sociedade mediante envio de notificação com prazo de 60 dias.

Além da previsão do caput, o parágrafo único do art. 1.053 do CC prevê que “o contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima”, qual seja, a Lei Federal nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (“Lei das Sociedades Anônimas”).

A expressão “regência supletiva” contida no parágrafo único do art. 1.053 do CC pode ser entendida como sendo o conjunto de normas legais que irão suprir as omissões do contrato social, incidindo, nessa hipótese, as regras previstas originalmente para outras situações.

É dizer, havendo omissões no capítulo do Código Civil que trata das sociedades limitadas, deverão ser aplicadas as normas previstas para as sociedades simples para as sociedades limitadas (art. 1.053, caput). E, havendo omissões no contrato social sobre qualquer assunto, e, desde que haja previsão de regência supletiva no contrato social, deverá ser aplicada a Lei das Sociedades Anônimas à sociedade limitada (parágrafo único do art. 1.053).

E, em se tratando de sociedades anônimas, o acionista somente pode se retirar quando discordar da realização de determinados atos aprovados pela assembleia geral, nos termos do art. 137 da Lei das Sociedades Anônimas. Não existe a possibilidade de retirada da sociedade de forma imotivada e, ainda, descabe o ajuizamento de ação de dissolução parcial, notadamente quando se trata de sociedade de capital aberto (com ações negociadas na bolsa de valores).

Agora, imaginemos a seguinte hipótese: como se dará o direito de retirada de um sócio numa sociedade limitada que tenha, no seu contrato social, a previsão de regência supletiva pela Lei de Sociedade Anônima? O sócio poderá se utilizar da previsão existente para a sociedade simples (retirada imotivada mediante simples notificação)? Seu direito estará restrito ao momento em que se der alguma modificação do contrato, fusão ou incorporação? Será necessário o ajuizamento de ação de dissolução parcial da sociedade?

Uma análise literal do caput do art. 1.053, associado com o art. 1.077, ambos do CC, nos permitiria concluir que o sócio somente poderia retirar-se da sociedade quando houver alteração do contrato social, fusão ou incorporação, ou por meio do ajuizamento da ação de dissolução parcial.

Mas eis que o Superior Tribunal de Justiça, quando do recente julgamento do Recurso Especial nº 1.839.078/SP, fixou entendimento de que, ainda que uma sociedade limitada seja regida supletivamente pela Lei de Sociedade Anônima, um sócio pode se retirar imotivadamente do quadro societário na forma prevista no art. 1.029 do CC.

O relator do recurso, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, explicou que “a aplicação supletiva da Lei nº 6.404/76 não tem o condão de afastar o direito de retirada imotivada nas sociedades limitadas de prazo indeterminado” e que o art. 5º, XX, da Constituição Federal, “de eficácia irradiante sobre todo o ordenamento jurídico, deve servir de parâmetro de interpretação das normas infraconstitucionais, inclusive daquelas aplicáveis às sociedades limitadas”, motivo pelo qual “deve ser preservado, também nas sociedades limitadas de prazo indeterminado regidas supletivamente pela Lei das Sociedades Anônimas, o direito de retirada imotivada”.

Além disso, foi consignado que a aplicação supletiva das normas relativas às sociedades anônimas somente deverá ocorrer no que for compatível com o regramento das sociedades limitadas estabelecido pelo CC, de modo que “não havendo previsão específica na Lei nº 6.404/76 acerca da retirada imotivada, e sendo tal omissão incompatível com a natureza das sociedades limitadas, imperioso reconhecer a possibilidade de aplicação do art. 1.029 do CC”.

Segundo o entendimento do STJ, portanto, a aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas não possui o efeito de afastar o direito de retirada imotivada nas sociedades limitadas, considerando que a própria Constituição Federal garante o direito fundamental de associação e de não associação.

As consequências práticas da aplicação do entendimento esposado nessa decisão são, entretanto, bastante discutíveis, pois remetem necessariamente à apuração de haveres do sócio retirante e às responsabilidades que cada qual assumiu enquanto sócio, e que se diferem no tempo. E joga luzes sobre o problema da ausência de regras específicas a esse respeito nos contratos sociais, em que grande parte traz previsões genéricas e padronizadas.

 

[1] Ricardo Negrão, Manual de Direito Comercial e de Empresa – Teoria Geral da Empresa e Direito Societário

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