10/03/2010
A competência da Assembléia Geral para fixação das remunerações dos administradores, inclusive benefícios de qualquer natureza, decorre de expressa disposição legal. Diz a lei:
“Art. 152. A assembléia-geral fixará o montante global ou individual da remuneração dos administradores, inclusive benefícios de qualquer natureza e verbas de representação, tendo em conta suas responsabilidades, o tempo dedicado às suas funções, sua competência e reputação profissional e o valor dos seus serviços no mercado.”
É fato que a redação atual do artigo 152 da lei societária é resultante de uma das alterações introduzidas pela Lei 9457, que é de 05 de Maio de 1997, o que permite indagar sobre deliberações anteriores a essa data, já que na redação anterior a competência para fixação de benefícios, pela assembléia geral, não constava do comando legal: lex regit actum.
A lei 9457/97 teve o declarado objetivo de facilitar a venda de companhias sob controle estatal. Veiculou diversas alterações na legislação societária, dentre elas, a título de exemplo, a revogação do artigo 254, que extinguiu temporariamente o mecanismo do tag along – posteriormente reintroduzido no ordenamento pela Lei 10.303/01. Isso quer dizer que, além de uma interpretação literal do dispositivo em comento, do próprio contexto da mini-reforma de 1997 não se extrai que a alteração do artigo 152 passou a proibir algo que antes era permitido fora do âmbito da assembléia.
Além de não se alinhar com objetivo daquela reforma, como exposto, não teria sentido nenhum que a lei, na versão anterior a 1997, dispusesse sobre a competência da assembléia geral para fixação da remuneração dos administradores, mas deixasse ao alvedrio desses (via conselho diretor, conselho de administração, diretoria ou qualquer órgão executivo criado pela companhia) a definição de outros benefícios.
A lei de 1997 apenas aclarou, no âmbito dos objetivos de então, o que, de outra forma, já se encontrava previsto. Alterou, apenas, o modus dicendi. A inércia da companhia em questionar benefício concedido irregularmente, por certo período, não lhe retira o direito de arguir, a posteriori, o vício que venha a vislumbrar. Não pode, em outras palavras, ser entendida como ratificação absoluta da concessão de benefício concedido por órgão que não a assembléia. Descortinando, posteriormente, algum vício no ato praticado, cujos efeitos são projetados também para o futuro, terá a companhia o direito de argui-lo. Não se cuida de aplicação da teoria dos atos ultra vires, que pode ser traduzida, literalmente, por além das forças, isto é, se o ato de instituição do benefício se afina com a o objeto social da companhia.
É fato que, aprovado o benefício, parte dos recursos da companhia passa a ser dirigida, não para distribuir lucros aos seus acionistas, mas para o pagamento dos beneficiários. A definição do objeto de forma precisa e completa, pelo estatuto social, põe limites, é certo, à atuação dos administradores. Mas não elimina os chamados poderes implícitos. Tome-se como exemplo a contratação de empregados. Além disso, a teoria ultra vires encontra-se em franca decadência, pois o dinamismo das relações empresariais modernas justifica a proteção da boa-fé de terceiros que contrataram com a companhia, acreditando na palavra de seu representante.
Por outro lado, se é certo que o ato de instituição do benefício a administradores depende de deliberação da assembléia, há que se perquirir se o vício que o inquina encerra nulidade absoluta ou relativa. Há quem sustente tratar-se de ato anulável, há quem diga o contrário: o ato nulo seria de pleno direito. Ambos os lados têm, de fato, argumentos de robusta juridicidade. Mas entendemos que a concessão do benefício sem deliberação assemblear encerra ato anulável, e sob tal prisma devem ser analisados seus efeitos.
Isso porque, em primeiro lugar, a lei 6404/76 não admite, em regra, nulidades absolutas, misturando os conceitos ou dando a eles tratamento diferente daquele da lei civil, quer quando cotejados com a legislação codificada de 1916, quer quando se o faça com a de 2002. Tome-se como exemplo o artigo 286 da LSA:
“A ação para anular as deliberações tomadas em assembléia-geral ou especial, irregularmente convocada ou instalada, violadoras da lei ou do estatuto, ou eivadas de erro, dolo, fraude ou simulação, prescreve em 2 (dois) anos, contados da deliberação”.
Ora, a irregularidade na convocação da assembléia-geral, geraria, de acordo com a lei civil, uma nulidade absoluta, pois a lei prescreve a forma para sua convocação (LSA, artigo 124), e é nulo o ato quando não se revestir da forma prescrita em lei (CC/16, artigo 145; CC/02, artigo 166, IV). Contudo, o defeito é tratado no artigo 286 da lei societária como sanável, uma vez que, não ajuizada a ação no prazo prescricional de dois anos, reputar-se-á superada a irregularidade da convocação.
Mas não é só. Suponha-se que a instituição do benefício aos administradores, concedido por outro órgão da companhia, viesse a ser sanada pela assembléia geral. Alguém poderia dizer que a vontade soberana da companhia, expressa por seu órgão máximo, encontraria algum óbice legal? Se é admissível, em tese, a ratificação, a patologia do ato, o vício congênito, ínsito, que de fato existe, não implica nulidade absoluta, a teor do artigos 169 e 172 do Código Civil. A nulidade é, portanto, relativa. Daí surge uma outra questão. Se a nulidade é relativa, sua argüição estará sujeita aos efeitos da prescrição? A questão precisa ser analisada com cuidado.
Em se tratando de obrigação de trato sucessivo, a cada prestação nasce para o devedor o direito de arguir o vício que entenda existente. O prazo prescricional recomeça a cada prestação, respeitando-se, obviamente, a prescrição para repetição daquelas já atingidas pelo lapso temporal fixado na lei. Se a companhia suspende o cumprimento da obrigação de inopino, sem autorização judicial, assume os riscos de sua conduta. Se entendido, posteriormente, que sua conduta foi ilegal, violou direitos ou causou danos, sujeita-se à reparação, inclusive de cunho moral, se o caso. Se, contudo, sua conduta restar prestigiada pelas cortes de justiça, isto é, a decisão for de que o melhor direito lhe socorre, nada há a ser indenizado. Em suma, a aceitação do ônus por um período determinado, mercê dos pagamentos e da eventual aprovação das demonstrações financeiras subsequentes, não subtraem da companhia o direito de questionar a obrigação, posto produzir efeitos permanentes.
Há um último aspecto que convém ser analisado. Operações societárias inserem-se numa área muito específica do direito. As operações de M&A são regidas por regras bastante específicas, de natureza convencional, geralmente aceitas, exsurgindo como de inegável relevância, nesse contexto, os capítulos das Declarações e Garantias. Há um artigo interessante de autoria de Maristela Sabbag Abla (“Reorganização Societária”; Instituto de Direito Societário Aplicado; Editora Quartier Latin, São Paulo, 2005), em que se fez interessante citação: “I´m willing to bet my briefcase that lawyers spend more time negotiating Representations and Warranties of the Seller than any other single article in the typical acquisition agreement” (“Eu apostaria minha pasta que os advogados gastam mais tempo negociando declarações e garantias do vendedor do que qualquer outro artigo num contrato típico de aquisição, apud James C. Freund). Sem dúvida, as contingências trazidas com o fechamento de operações societárias trazem um risco significativo para o comprador, e nesse sentido o papel das Declarações e Garantias: persuadir o vendedor a prestar as mais acuradas e completas informações. Por tal relevância, contratos de aquisição trazem usualmente anexos relativos a cada declaração e garantia (chamados Disclosure Schedules), nos quais são precisadas as contingências de cada área da companhia objeto da negociação. E nesse contexto assumem especial papel as due diligences, cuja finalidade, em suma, é quantificar contingências jurídicas, financeiras e contábeis, visando racionalizar a identificação dos riscos da operação. Na ponta compradora residem, é certo, os maiores riscos, e via de regra as declarações e garantias são escritas para protegê-la. Por isso, é sempre relevante que no Capítulo das “Declarações e Garantias dos Atuais Acionistas Controladores”, seja estabelecida uma cláusula acerca de Contratos com Partes Relacionadas, em que os controladores declaram, como uma das condições do negócio, quais os contratos ou acordos em vigor em que tenham interesse, tenham ou não sido aprovados em assembléia, o que resolve situações desse jaez.
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