Força obrigacional de atos societários sem registro: análise da decisão do STJ

22/08/2025

Por Viviane Ramos Nogueira

Em recente julgado, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, reafirmou a força obrigacional de documentos societários formalizados por todos os sócios, mesmo quando não registrados na Junta Comercial. A decisão, proferida por unanimidade em 4 de fevereiro de 2025, consolidou o entendimento de que documentos subscritos por todos os sócios com observância das formalidades legais produzem efeitos jurídicos válidos no âmbito interno da sociedade, inclusive para viabilizar a exclusão extrajudicial de sócio por justa causa.

O caso analisado envolvia uma sociedade limitada cujo documento complementar ao contrato social, prevendo a exclusão extrajudicial de sócio por justa causa, não havia sido levado a registro. O sócio excluído defendia a nulidade do ato, sob o argumento de que a exclusão sem intervenção judicial exigiria previsão expressa no contrato social, nos termos do art. 1.085 do Código Civil. Ainda assim, o STJ entendeu que o instrumento possuía eficácia plena entre os sócios, permitindo a exclusão com base nas disposições pactuadas.

A sociedade limitada é, por essência, um tipo societário de natureza contratual, o que confere ao contrato social papel estruturante da relação societária. O contrato social, portanto, não apenas formaliza a constituição da sociedade, mas também disciplina a relação jurídica entre os sócios. Nele se definem regras fundamentais, como o objeto social, o capital, as quotas, a forma de administração e a distribuição de lucros.

Essas cláusulas, elencadas no art. 997 do Código Civil, só podem ser alteradas mediante deliberação em quórum legal (arts. 1.071 e 1.076[1]) e, para produzir efeitos perante terceiros, devem ser registradas na Junta Comercial.

Contudo, a eficácia interna de documentos assinados pelos sócios não está, necessariamente, condicionada ao registro público. E foi exatamente essa a premissa central acolhida pelo STJ no julgamento ora comentado.

Apesar do reconhecimento da eficácia interna de documentos não registrados, é essencial distinguir os atos que, por força legal, devem ser levados a registro, para produzir efeitos perante terceiros e garantir segurança jurídica. A título exemplificativo, incluem-se:

• Constituição e alterações contratuais: como modificações do capital social, objeto social, sede, razão ou denominação social, forma de administração, quotas ou participações societárias, entrada ou retirada de sócios, entre outras;

• Distrato social: extinção da sociedade e liquidação do patrimônio;

• Nomeação ou destituição de administradores, inclusive alterações de cláusulas de assinatura ou procurações com efeitos perante terceiros;
• Transformação, incorporação, fusão ou cisão da sociedade, atos que modificam sua estrutura jurídica;

• Criação ou extinção de filiais e outras unidades, que impactam o cadastro fiscal e a operação da empresa.

Esses atos, entre outros previstos em legislação específica, exigem registro para que tenham plena eficácia perante órgãos públicos, instituições financeiras, fornecedores, investidores e demais terceiros interessados. O registro, nesses casos, possui natureza constitutiva ou declaratória, conforme o tipo de ato, e constitui elemento essencial para conferir segurança jurídica às relações negociais da sociedade no ambiente externo.

No caso concreto, logo após a constituição da sociedade, os sócios firmaram um documento que continha disposições semelhantes às do contrato social, inclusive quanto à possibilidade de exclusão extrajudicial de sócio por falta grave. Embora não registrado, o instrumento foi assinado por todos os sócios com quórum unânime – superior ao legalmente exigido – e com conteúdo que atendia às exigências do art. 997 do Código Civil.

A Terceira Turma entendeu que, nessas circunstâncias, o documento poderia ser considerado adição válida ao contrato social, produzindo efeitos jurídicos imediatos entre os sócios signatários. Essa compreensão reforça um princípio essencial do direito societário: a autonomia privada dos sócios e a força obrigacional dos pactos internos, desde que não contrariem a lei ou a ordem pública.

A exclusão extrajudicial de sócio, especialmente em sociedades contratuais como a limitada, é medida de exceção que demanda:

• previsão expressa no contrato social (art. 1.085, caput, do Código Civil);

• falta grave devidamente caracterizada;

• deliberação por maioria do capital social, com preservação do contraditório e ampla defesa do sócio excluído.

No julgado, o STJ entendeu que, embora o contrato social registrado não previsse expressamente a exclusão extrajudicial, o documento (não registrado) preenchia todos os requisitos para complementar o contrato – inclusive por ter sido assinado com quórum de unanimidade, superior ao legalmente exigido.

Portanto, a ausência de registro não esvazia a eficácia da cláusula de exclusão extrajudicial entre os sócios, desde que a formalização seja robusta e inequívoca.

Na prática societária, é comum a celebração de documentos que, embora não integrem formalmente o contrato social arquivado, exercem papel central na governança interna da sociedade. Com frequência, opta-se conscientemente por não levar tais instrumentos a registro, não por descuido, mas por estratégia deliberada das partes – especialmente quando há interesse na preservação da confidencialidade e na flexibilidade negocial.

É o que se observa, por exemplo, em:

• Acordos de quotistas que regulem a distribuição desproporcional de lucros, regras de sucessão, política de dividendos, direito de preferência e restrições à cessão de quotas – temas muitas vezes sensíveis, cujas cláusulas os sócios preferem manter fora do alcance público;

• Memorandos de entendimentos que tratem de reorganizações societárias futuras, condições de saída de sócios ou reestruturação de controle, e que demandem liberdade para negociação progressiva antes da formalização em instrumento arquivável;

• Estatutos internos com regras de governança mais granulares – quóruns reforçados, votações colegiadas, estruturas comitês ou regras de vesting[2] de participação societária –, úteis em estruturas que envolvam colaboradores estratégicos ou fundos de investimento;

• Termos de não concorrência, confidencialidade e remuneração de sócios administradores, assinados entre os próprios sócios, muitas vezes sem interesse em divulgação externa, por razões de proteção comercial ou sigilo estratégico.

Ainda que nem todos sejam arquivados, eles se mostram essenciais para dar previsibilidade, segurança e estabilidade à dinâmica societária – sobretudo em sociedades familiares, holdings patrimoniais e veículos de investimento.

Assim, embora o registro seja recomendável em muitos casos, há situações em que a manutenção da governança em âmbito reservado é não apenas legítima, mas desejável. A chave está na boa formalização, no alinhamento entre as partes e na compreensão de que a ausência de registro não compromete, por si só, a eficácia obrigacional entre os sócios.

A decisão do STJ representa um precedente relevante, mas também reforça a necessidade de cautela na gestão documental das sociedades. Nesse sentido, recomenda-se:

• formalizar adequadamente qualquer documento societário complementar, observando quórum, assinatura e clareza de conteúdo;

• guardar tais instrumentos como parte do acervo documental da sociedade, com ciência inequívoca de todas as partes;

• avaliar a necessidade de registro, especialmente se o instrumento impactar terceiros ou alterar cláusulas essenciais;

• em caso de exclusão de sócio com base em instrumento não registrado, documentar cuidadosamente o procedimento e preservar provas da validade da deliberação, garantindo contraditório e justificativa clara.

A decisão do STJ reafirma um pilar do direito societário brasileiro: a força dos pactos celebrados entre os sócios, ainda que não registrados, quando observadas as formalidades legais. O contrato social, embora essencial, não exaure o universo normativo da sociedade limitada. Pode – e deve – ser complementado por instrumentos internos eficazes, desde que juridicamente válidos.

Contudo, o registro permanece como ferramenta indispensável para reforçar a segurança jurídica, garantir a publicidade dos atos societários e assegurar sua plena oponibilidade perante terceiros.

 

[1] A alteração dessas cláusulas depende de deliberação dos sócios, com votos que representem, conforme o caso, a maioria do capital social (art. 1.076, II), ou a maioria dos presentes (art. 1.076, III), salvo se o contrato social estipular maioria mais elevada.

[2] O vesting é um mecanismo contratual que condiciona a aquisição progressiva do direito de participação societária a marcos temporais ou metas previamente definidos. É comum em estruturas de partnership ou incentivo de longo prazo para executivos e colaboradores-chave.

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