Direito a uma morte digna – Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV)

30/09/2022

Por Cylmar Pitelli Teixeira Fortes e Bianca Moreira da Silva

I. Breve introito.

Com o avanço da medicina, novos tratamentos e medicamentos proporcionaram a possibilidade de prolongamento da vida humana. Sabe-se que certos tratamentos, em que pese capazes de manter o paciente vivo, em alguns casos são paliativos e apenas prolongam o sofrimento do próprio paciente e de seus familiares, sem expectativa de reversão do quadro clínico.

Não é incomum nos depararmos com situações em que as pessoas manifestam claramente o desejo de não serem submetidas a determinado tipo de tratamento, ou a certos métodos, em situações de incapacidade, temporária ou terminativa.

Nesses casos, até pouco tempo atrás, se o paciente ou seus familiares optassem pelo não-tratamento, os profissionais médicos se viam diante de um impasse: seguir com o tratamento contra a vontade da família e do paciente, ainda que paliativo, ou atender ao pedido da família – e/ou do próprio paciente, manifestado anteriormente de forma livre e consciente – e proporcionar a ele uma morte digna?

Foi então que a Resolução 1.995/2012, editada pelo Conselho Federal de Medicina, contribuiu com os profissionais médicos na tomada da decisão e criou a chamada DAV – Diretivas Antecipadas de Vontade. A DAV, em resumo, é um documento que espelha a vontade do próprio paciente em situações desse jaez.

II. Diretivas Antecipadas de Vontade. Testamento Vital. Mandato Duradouro.

As diretivas antecipadas de vontade são definidas no artigo 1º da Resolução 1.995/2012, do Conselho Federal de Medicina (CFM), como “um conjunto de desejos, manifestados de forma prévia e expressa pelo paciente, a respeito de todos os cuidados e tratamentos que deseja ou não receber quando não puder expressar, livre e autonomamente, sua vontade”.

A mencionada Resolução é a primeira regulamentação sobre a matéria no País, pois ainda não há legislação específica que trate desse tema. De acordo com o CFM, a Resolução respeita a autonomia da vontade do paciente e não possui qualquer relação com a eutanásia, que é proibida no Brasil.

As diretivas antecipadas baseiam-se nos princípios da dignidade da pessoa humana, da autonomia privada e da proibição constitucional de tratamentos desumanos, todos previstos na Constituição Federal, como também no artigo 15 do Código Civil, que dispõe textualmente que “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

Além disso, o Enunciado 528 da V Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal, determina que: “É válida a declaração de vontade, expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”.

Historicamente, as diretivas antecipadas têm sido entendidas como o gênero do qual são espécies o testamento vital (living will) e o mandato duradouro (durable power of attorney). Ambos os documentos serão utilizados quando o paciente não puder se expressar, livre e conscientemente, mesmo que por uma situação transitória. Ou seja, as diretivas antecipadas, como gênero, não se referem apenas a situações de terminalidade.

Em síntese, o testamento vital contém orientações sobre futuros cuidados médicos ao quais uma pessoa que esteja incapaz de expressar sua vontade gostaria de ser submetida. Já o mandato duradouro diz com a nomeação de um terceiro para tomar decisões em nome do paciente, quando este estiver impossibilitado, definitiva ou temporariamente, de manifestar sua livre vontade.

O Conselho Federal de Medicina reconheceu ser possível dispor, em um mesmo documento, acerca do testamento vital e do mandato duradouro. Ou seja, no mesmo instrumento é possível que a pessoa disponha sobre a sua declaração de vontade, bem como nomeie um representante para situações de incapacidade definitiva ou temporária.

“Art. 2º da Resolução – Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.

§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.”

Importante ressaltar que não se trata de um testamento propriamente dito, mas de uma escritura pública de declaração, uma vez que o primeiro somente produz efeitos após a morte do testador, enquanto esta última produz efeitos ainda em vida (mesmo que o testador esteja incapaz de expressar a sua vontade). É comum, portanto, que o documento seja lavrado com a denominação de “Escritura Pública de Declarações Antecipadas de Vontade e Outras Disposições”.

Convém acrescentar que o artigo 2º, §§ 3º e 4º da Resolução, determinam que as diretivas antecipadas de vontade devem ser registradas, pelo médico, no prontuário do paciente, a fim de que seja possível fazer valer a sua vontade:

“§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.

“§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.”

III. Contexto Histórico.

De acordo com o artigo “Reflexos Jurídicos da Resolução CFM 1.995/12”, elaborado em 2012 por Luciana Daldato, doutora em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais, o testamento vital foi apresentado pela primeira vez em 1967 pela Sociedade Americana para a Eutanásia como um “documento de cuidados antecipados, pelo qual o indivíduo poderia registrar seu desejo de interromper as invenções médicas de manutenção da vida”.

Já em 1969, o advogado e ativista de Direitos Humanos dos Estados Unidos, Luis Kutner, elaborou um modelo de declaração prévia de vontade, com o objetivo de demonstrar a maneira pela qual um paciente em estado terminal gostaria de ser tratado, bem como facilitar a comunicação entre médicos e familiares acerca da tomada de decisão dos tratamentos a que o paciente em estado de terminalidade deveria ser submetido.

Anos mais tarde, com a aprovação do Natural Death Act pelo Estado da Califórnia, em 1976 – lei que se tornou o primeiro diploma legal a reconhecer o testamento vital – diversos estados norte-americanos passaram a aprovar leis que o regulamentaram.

Em 1990, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento do caso Nancy Beth Cruzan – jovem que ficou em estado de coma irreversível após grave acidente automobilístico – deferiu o pedido formulado pelos pais dela, para que fossem retirados os aparelhos que a mantinham viva, em respeito à manifestação prévia de vontade da paciente que, tempos antes do acidente, havia comentado com uma amiga que não gostaria de ser mantida viva quando tivesse menos da metade de suas capacidades normais.

Assim, sob forte clamor público, no ano seguinte foi aprovada no Estados Unidos a Patient Self-Determination Act (PSDA), primeira lei federal a reconhecer o direito à autodeterminação do paciente e o direito do paciente a fazer uma diretiva antecipada, em suas duas modalidades: testamento vital e mandato duradouro.

Na Europa, o primeiro país a legalizar as diretivas antecipadas foi a Espanha, por meio da Lei 41, promulgada em 2002, que permite que o outorgante nomeie um representante para exprimir a vontade do subscritor do documento, quando este não puder se expressar livremente. Já na Argentina, a primeira legislação sobre diretivas antecipadas foi a Lei 4.263, da província de Rio Negro, promulgada em 2007.

IV. Consequências jurídicas da Resolução 1.995/2012 do CFM.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina representa um grande passo na discussão sobre o tema no Brasil. Contudo, não encerrou o debate jurídico sobre o tema, haja vista que o CFM não tem competência legal para regulamentar pontos importantes, não previstos na Resolução, como, por exemplo, a capacidade do indivíduo para fazer as diretivas antecipadas, a especificação dos tratamentos que podem ser aceitos ou recusados, a obrigatoriedade (ou não) de realização das diretivas por meio de escritura pública, e a necessidade (ou não) de acompanhamento de um médico na elaboração das diretivas.

Diante dessa ausência de regulamentação, na prática, as recomendações são seguintes:

(i) apenas os maiores de 18 anos e os menores emancipados, em pleno gozo de suas faculdades mentais, podem recorrer às diretivas antecipadas;

(ii) as diretivas devem ser realizadas por meio de escritura pública, a fim de garantir a sua efetividade, uma vez que os tabeliães possuem fé pública; e

(iii) a escritura pública deve ser elaborada na presença de testemunhas, para confirmar a capacidade de discernimento do declarante.

Por outro lado, há quem cogite de que um médico de confiança oriente os itens que integrarão as diretivas, informando quais os tratamentos ordinários e extraordinários, bem como aqueles que não violam o Código de Ética Médica, a fim de evitar que o documento preveja situações que encontrem resistência por parte do médico que vier a estar à frente do tratamento, no momento próprio. Mas isso é evidentemente muito relativo e totalmente interpretativo.

O prazo de validade das diretivas antecipadas de vontade é indeterminado e perdurará até que o indivíduo as altere ou revogue.

V. Temas passíveis de serem objeto das Diretivas Antecipadas de Vontade.

Por meio das diretivas antecipadas de vontade, o declarante manifestará sua vontade a respeito dos direitos do corpo, da personalidade, e da administração de seu patrimônio, na eventualidade de uma moléstia grave ou acidente, que o impeçam de expressar a sua vontade.

As diretivas poderão conter orientações aos profissionais médicos sobre a realização de certos procedimentos, diagnósticos e terapêuticos, e versar sobre a interrupção ou suspensão de tratamentos extraordinários, que visem apenas prolongar a vida, quando não houver mais perspectiva de reversão do quadro clínico. Já os tratamentos tidos como paliativos, cujo objetivo é melhorar a qualidade de vida do paciente, não poderão ser dispensados.

Em suas diretivas antecipadas o declarante também poderá manifestar seu desejo de, por exemplo:

(i) ser internado em clínica de repouso ou asilo, em caso de impossibilidade de cuidar de si próprio;

(ii) dispor acerca da forma de realização de seu sepultamento e destinação de suas cinzas, caso opte pela cremação;

(iii) nomear pessoas responsáveis por adotar as medidas legais perante necrotérios, hospitais, cemitérios e crematórios; e até mesmo,

(iv) exteriorizar a vontade de que – se porventura alguém tiver as senhas de acesso às suas redes sociais – não poste declarações de luto ou manifestações de qualquer espécie nesse sentido por meio delas.

VI. Entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Em que pese as diretivas antecipadas de vontade ainda não tenham sido objeto de grandes debates nos Tribunais, no ano de 2019 o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao negar provimento a um recurso cujo objetivo era a elaboração de diretivas antecipadas de vontade, reconheceu que a manifestação de vontade na elaboração do testamento vital gera efeitos independentemente da chancela judicial, assim decidindo:

JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE. ORTOTANÁSIA[1]. Pretensão de estabelecer limites à atuação médica no caso de situação futura de grave e irreversível enfermidade, visando o emprego de mecanismos artificiais que prologuem o sofrimento da paciente. Sentença de extinção do processo por falta de interesse de agir. Manifestação de vontade na elaboração de testamento vital gera efeitos independentemente da chancela judicial. Jurisdição voluntária com função integrativa da vontade do interessado cabível apenas aos casos previstos em lei. Manifestação que pode ser feita por meio de cartório extrajudicial. Desnecessidade de movimentar o Judiciário apenas para atestar sua sanidade no momento da declaração de vontade. Cartório Extrajudicial pode atestar a livre e consciente manifestação de vontade e, caso queira cautela adicional, a autora poderá se valer de testemunhas e atestados médicos. Declaração do direito à ortotanásia. Autora que não sofre de qualquer doença. Pleito declaratório não pode ser utilizado em caráter genérico e abstrato. Falta de interesse de agir verificada. Precedentes. Sentença de extinção mantida. Recurso não provido.” (TJSP. Apelação nº 1000938-13.2016.8.26.0100. Des. Rel. Mary Grun. Julgado em 10/04/2019.)

No mesmo sentido, em caso similar, no qual o interessado pretendia a declaração do direito de opção pela ortotanásia e cremação após sua morte, o TJSP entendeu que a intervenção judicial não era necessária, haja vista que ele poderia valer-se do testamento vital para tanto:

“DECLARATÓRIA – Ação que objetiva a declaração do direito de opção pela ortotanásia e pela cremação após a morte – Extinção do processo – Ausência de interesse de agir – Inconformismo do autor – Desacolhimento – Aplicação do disposto no art. 252 do RITJSP – Pedido hipotético – Ausência de pretensão resistida – Pedido formulado pelo apelante que dispensa intervenção judicial, pois pode ser obtido por meio de “testamento vital” – Sentença mantida – Recurso desprovido
[…] Dessa forma, não havendo lide resistida, mas mera intenção de declaração de acerto de tese jurídica e/ou de direito em tese, não demonstrou o autor interesse jurídico, sendo de rigor a extinção do processo, sem resolução do mérito. […].
Note-se que se trata de pedido hipotético, pois o apelante não aponta sequer a doença que o acomete, sem a indicação de pretensão resistida, o que torna patente a falta de interesse de agir.
Se não bastasse isso, não se mostra imprescindível a intervenção judicial, haja vista que o apelante pode se valer de “testamento vital” para obter sua pretensão, nos termos do enunciado n. 528 da V Jornada de Direito Civil, do seguinte teor: “É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”. (TJSP; Apelação 1001378-30.2015.8.26.0363; Rel. Des.: J.L. Mônaco da Silva; Data do Julgamento: 31/01/2018).

Evidente, portanto, que o Tribunal de Justiça de São Paulo reconhece a validade das diretivas antecipadas de vontade, não deixando dúvidas de que a chancela judicial não é necessária para que o indivíduo ateste a sua livre e consciente manifestação de vontade.

VII. Conclusão.

A Resolução CFM 1.995/12 representa um grande avanço sobre as diretivas antecipadas no Brasil, mas ainda não temos uma lei que o regulamente e que possa definir inevitáveis questões relativas ao discernimento e capacidade do declarante, cuidados e tratamentos que podem ou não ser recusados, possível registro das diretivas antecipadas e extensão da participação do médico na realização das diretivas.

A ausência de lei específica sobre o tema até esse momento[2] não constitui óbice para a formalização das diretivas antecipadas de vontade que, inclusive, foram reconhecidas como válidas pelo CNJ (Enunciado 528 da V Jornada de Direito Civil) e pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

De todo modo, uma premissa é certa: todos os seres vivos têm direito a uma morte digna, sem dor e sofrimento físico, moral ou espiritual. Esse direito não deve apenas poder ser manifestado: deve ser reconhecido e aceito por médicos e familiares, desde que, obviamente, seja exercido dentro dos parâmetros do ordenamento jurídico brasileiro.

[1] Ortotanásia, em suma, é o nome dado à conduta do médico que, diante de um quadro clínico irreversível do paciente, e do fato de que sua morte é certa, facilita-lhe o falecimento, a fim de poupar-lhe mais sofrimento.

[2] Atualmente, encontra-se em trâmite no Senado Federal o Projeto de Lei nº 149/2018, que dispõe sobre a regulamentação das diretivas antecipadas de vontade e estabelece a possibilidade de toda pessoa maior e capaz declarar, antecipadamente, o seu interesse de se submeter ou não a tratamentos de saúde futuros, caso se encontre em fase terminal ou acometido de doença grave ou incurável.

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