Por Patricia Costa Agi Couto
Com a Lei do Distrato Imobiliário (Lei nº 13.786/18), em vigor desde 28/12/2018, foi inserido o artigo 32-A à Lei de Parcelamento de Solo Urbano, dispositivo que define o que pode ser retido pelo loteador em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente:
“Art. 32-A. Em caso de resolução contratual por fato imputado ao adquirente, respeitado o disposto no § 2º deste artigo, deverão ser restituídos os valores pagos por ele, atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, podendo ser descontados dos valores pagos os seguintes itens:
I – os valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% (setenta e cinco centésimos por cento) sobre o valor atualizado do contrato, cujo prazo será contado a partir da data da transmissão da posse do imóvel ao adquirente até sua restituição ao loteador;
II – o montante devido por cláusula penal e despesas administrativas, inclusive arras ou sinal, limitado a um desconto de 10% (dez por cento) do valor atualizado do contrato;
III – os encargos moratórios relativos às prestações pagas em atraso pelo adquirente;
IV – os débitos de impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana, contribuições condominiais, associativas ou outras de igual natureza que sejam a estas equiparadas e tarifas vinculadas ao lote, bem como tributos, custas e emolumentos incidentes sobre a restituição e/ou rescisão;
V – a comissão de corretagem, desde que integrada ao preço do lote.
(…) (destacou-se)”
A partir da Lei do Distrato, portanto, passou a existir definição em lei do que o loteador deve devolver ao adquirente na desistência do negócio. Antes disso, tais abatimentos eram estabelecidos contratualmente e, havendo alegação de abusividade pelo comprador desistente, cabia ao Poder Judiciário adequar o percentual de retenção a percentuais considerados razoáveis de acordo com os ditames da legislação consumerista, em especial o artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, que veda a perda total de valores pagos na hipótese de rescisão do contrato em razão de inadimplemento. Na prática, quando a questão é submetida ao Judiciário, nossos Tribunais têm fixado retenções médias de 10% das parcelas do preço pagas, com pequenas variações para mais, nunca superiores a 25% do preço pago.
Com a alteração da lei, os valores que podem ser retidos pelo alienante são maiores do que a jurisprudência vigente autorizava até agora, situação que desencadeou vários pedidos de resolução de contratos firmados antes da alteração legal, com a aplicação imediata da nova lei.
Em resposta aos pedidos reiterados em tal sentido, o Superior Tribunal de Justiça, ao decidir o Recurso Especial nº 1.498.484-DF afetado como representativo de controvérsia, sinalizou negativamente à possibilidade de aplicação das disposições da Lei do Distrato a contratos anteriores à sua vigência. No acórdão relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão decidiu-se que a lei nova somente poderá atingir contratos celebrados posteriormente à sua entrada em vigor e, jamais, contratos anteriores, em razão do princípio constitucional da não-retroatividade da lei: “(…) não se pode cogitar a aplicação simples e direta da nova Lei n.º 13.786/2018 para solução de casos anteriores ao advento do mencionado diploma legal (retroatividade da lei, com consequente modificação jurisprudencial, com ou sem modulação)”.
Muito embora a orientação dada pelo STJ para o julgamento do tema seja clara, bem como inquestionável a vedação constitucional à retroatividade da lei, questiona-se como deverá portar-se a jurisprudência ao dirimir conflitos relativos a contratos anteriores à vigência da Lei do Distrato. Continuará fixando percentuais de retenção menores, muito embora haja lei em vigor que autorize retenções maiores e que, em breve, alterará o panorama jurisprudencial sobre o tema? Pode o julgador determinar uma retenção semelhante ao que determina a nova legislação, sem fundamentá-la na nova lei, mas com o mesmo efeito prático?
No processo de nº 1070803-55.2018.26.0100 que tramitou perante a 7ª Vara Cível do Foro Central, a questão foi assim dirimida: o Magistrado entendeu pela aplicação do percentual de retenção previsto na nova lei para incorporações imobiliárias (25% dos valores pagos pelo comprador), ressaltando que tal retenção era mais benéfica ao consumidor do que o percentual previsto no contrato em discussão. A justificar seu entendimento, ponderou ainda que “Tendo em conta que a lei posterior não traz gravame demasiado ao consumidor é possível a sua aplicação de plano, não havendo que se falar na aplicação de tal regra somente nos contratos instituídos a posteriori da publicação e vigência da nova redação trazida pela lei 13786/2018.”. Concluiu dizendo que “Ressalto que não vislumbro, de momento, qualquer inconstitucionalidade formal ou material- para a não aplicação imediata da lei. Inclusive por estar-se diante, no entendimento deste magistrado, de norma de retroatividade média, qual seja, se opera quando a nova lei, sem alcançar os atos ou fatos anteriores, atinge os seus efeitos ainda não ocorridos (efeitos pendentes). Desse modo, embora a lei não alcance a data da assinatura do contrato, a rescisão ou mais tecnicamente, a resilição contratual é efeito pendente, por isso alcançando assim a presente lide.”. Em 12/06/2019 a decisão foi revertida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que manteve o posicionamento do STJ e decidiu pela impossibilidade de aplicação da lei nova, em razão da vedação constitucional à retroatividade da lei e também em respeito ao ato jurídico perfeito. Muito embora tenha afastado a aplicação da Lei do Distrato a contrato antigo, o Tribunal manteve o percentual fixado pela sentença, justificando que a retenção de 25% era adequada a compensar a vendedora pelas despesas administrativas e fiscais realizadas com a celebração do contrato.
O que se depreende de tal situação é que, a despeito da impossibilidade de aplicação da nova lei a contratos anteriores à sua vigência, a jurisprudência pode, e a nosso ver deve, rever o posicionamento jurisprudencial para, paulatinamente, fixar percentuais de retenção em consonância com a legislação vigente. Não se trata de aplicar a lei nova retroativamente, mas de rever o posicionamento jurisprudencial para que se amolde à lei atual. Isso porque se a intenção da nova lei foi fixar penalidades um pouco mais severas ao comprador desistente, não há razão para que o Poder Judiciário mitigue tal intenção.
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