Por Roberto Caldeira Brant Tomaz
É fato notório que o negócio fiduciário se tornou uma das principais garantias exigidas por credores na celebração de contratos, em razão da força que possui para asseguração do cumprimento da obrigação pelos devedores.
Essa força deriva do fato de que, em tal modalidade de garantia, o devedor e proprietário aliena a coisa ao credor, passando a ser depositário e possuidor direto do bem, enquanto o credor detém a propriedade e a posse indireta da coisa sob condição resolutiva. De forma crua: o credor passa a ser o dono do bem, que pode ser material ou imaterial (como direitos, títulos escriturais etc.).
Com essas características, o negócio fiduciário passou a ter maior relevância no mercado do que outras opções de garantias, como a hipoteca, em que não há transferência resolúvel da propriedade sobre a coisa ao credor.
Como sabido, essa vantagem se reflete de forma relevante no âmbito dos processos de Recuperação Judicial, ante à previsão da Lei 11.101/2005 de não sujeição dos créditos garantidos por alienação ou cessão fiduciária[1], justamente porque o bem dado em garantia não mais compõe o patrimônio do devedor fiduciante, e, portanto, não poderá integrar o conjunto de ativos que serão utilizados para levantamento de recursos e pagamento aos demais credores.
Existe uma pequena corrente, entretanto, que vem defendendo, sem muita repercussão, a ideia de que, na hipótese de o credor fiduciário optar por perseguir outros bens do devedor além daquele dado em garantia, tal circunstância consistiria na renúncia tácita à garantia fiduciária, retornando o bem ao patrimônio e posse direta do devedor.
Como exemplo, cita-se um dos poucos precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferido em 13/04/2018:
"Recuperação judicial – Ajuizamento de execuções individuais – Renúncia à garantia fiduciária em relação a duas cédulas de crédito bancário – Caracterização – Créditos que devem ser habilitados como quirografários – Decisão reformada – Recurso provido em parte." (TJSP; Agravo de Instrumento 2030060-92.2018.8.26.0000; Relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Cotia – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/04/2018; Data de Registro: 13/04/2018).
Como dito, essa corrente não ganhou fôlego no Judiciário, mas vez ou outra, empresas devedoras em recuperação judicial se utilizam de temerária tese visando impedir a expropriação do bem dado em garantia e submeter o credor fiduciário ao concurso ordinário de credores na Recuperação Judicial.
Ora, tais alegações precisam ser firmemente rechaçadas pelos magistrados e demais operadores do Direito – inclusive administradores judiciais -, sob pena de severa desconfiguração do instituto consolidado do negócio fiduciário.
Sabe-se que, na prática, por variadas razões, o credor fiduciário pode acabar preferindo ajuizar uma ação de execução contra o devedor fiduciante e pedir a penhora dos direitos aquisitivos sobre o bem dado em garantia, principalmente durante o famigerado stay period, da Recuperação Judicial, que é o prazo previsto no § 4º do art. 6º da Lei, durante o qual é vedada a retirada dos bens da devedora alienados ou cedidos fiduciariamente, caso estes bens sejam considerados essenciais à manutenção do exercício das atividades da empresa em recuperação.
É preciso considerar que o art. 114 do Código Civil é claro ao dispor que “Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”. Em outras palavras, toda renúncia em negócio jurídico deve ser expressa, não se admitindo sua presunção de forma tácita.
Na formalização da garantia fiduciária não é diferente. Eventual renúncia ao bem ofertado em garantia ou cancelamento do negócio fiduciário, deve ser levado a termo, não podendo se admitir a alegação do devedor de que a mera propositura de ação de execução configura renúncia ao bem.
Especificamente no que concerne a bens imóveis, o artigo 38 da Lei n.º 9.514/1997 estabelece que a renúncia à propriedade fiduciária deverá ser celebrada por meio de instrumento público ou particular. Isto é, a renúncia à alienação fiduciária deve ser por escrito e, portanto, é expressa:
"Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública."
O Superior Tribunal de Justiça já assentou entendimento exatamente nesse sentido, quando do julgamento do REsp 1.338.748/SP, em 02/06/2016, relatado pelo Ministro Luís Felipe Salomão, abaixo ementado:
"RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. CRÉDITO NÃO SUJEITO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO DA DEVEDORA. ART. 49, §3º, DA LEI Nº 11.101/05. EXECUÇÃO EXTRAJUDICIAL. PEDIDO DE PENHORA ON LINE. RENÚNCIA À GARANTIA FIDUCIÁRIA. INOCORRÊNCIA. (…) 2. A renúncia à garantia fiduciária deve ser expressa, cabendo, excepcionalmente, a presunção da abdicação de tal direito. 3. Na hipótese, não houve renúncia expressa nem tática da garantia fiduciária pelo credor, mas sim, em razão das circunstâncias do caso, como medida acautelatória, pedido de penhora do ativo até que as garantias fossem devidamente efetivadas. 4. Recurso especial não provido".[2]
Na mesma linha é o entendimento atual e dominante nas Câmaras de Direito Privado do Egrégio Tribunal de Justiça Paulista, no sentido de que a busca de outros bens além daqueles oferecidos em garantia não resulta em renúncia, a qual deve ser expressa:
"Execução por quantia certa, de título extrajudicial – Penhora, avaliação e remoção de bens móveis (tratores e colhedoras) – Impugnação dos executados, sob o fundamento de que as executadas pessoas jurídicas estão em recuperação judicial e o processo foi suspenso – Bens móveis gravados com alienação fiduciária e crédito extraconcursal – Suspensão do processo nos 180 dias do art. 6º, §4º, da Lei n. 11.101/05 ("stay period") – Prosseguimento independente de pronunciamento judicial – Opção do credor pela execução que não significa renúncia à alienação fiduciária, podendo desistir da execução – Crédito ainda extraconcursal, não alcançado pela novação ao ser aprovado o plano de recuperação – Opção à qual não se aplica a máxima "electa una via, non datur regressus ad alterum" – Admissibilidade da penhora sobre os bens gravados com alienação fiduciária e sobre outros se aqueles não forem suficientes como se verificar em avaliação – Depósito em mãos de prepostos do exequente conforme o art. 840, §1º, do novo CPC – Exceção a essa regra, quando os bens forem rurais ou necessários ou úteis à atividade agrícola, mediante caução idônea ( art. 840, inciso III) – Remoção cabível, enquanto os executados não prestarem caução e tornarem-se depositários – Recurso desprovido, com observação." (TJSP; Agravo de Instrumento 2007276-87.2019.8.26.0000; Relator (a): Cerqueira Leite; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro de Piracicaba – 1ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 22/05/2019; Data de Registro: 30/05/2019).
Por tudo isso, conclui-se que não há que se falar em renúncia tácita à garantia fiduciária seja pela cobrança judicial ou extrajudicial do devedor visando a expropriação de outros bens. Tal alegação configura nada além de uma justificativa metajurídica utilizada por alguns devedores, na tentativa de frustrar a satisfação de dívidas perante seus credores.
O meio jurídico deve estar atento para não ceder a alegações dessa natureza, ainda que se encontre esparsos precedentes a sustentar dita teratologia, em detrimento da correta tese pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça.
[1] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
(…)
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
[2] REsp 1.338.748/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 02/06/2016, DJe 28/06/2016.
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