Por Marsella Medeiros Araujo Bernardes
Em regra, o patrimônio das pessoas jurídicas não se confunde com o patrimônio pessoal dos seus sócios. Significa dizer que cada uma dessas pessoas, físicas e jurídicas, arca com suas obrigações de forma autônoma e independente.
Para situações de abuso da personalidade jurídica, entretanto, a lei prevê que o patrimônio do sócio e o da pessoa jurídica poderão responder reciprocamente pelas dívidas contraídas, a depender do caso concreto.
Nas palavras do Ministro Luis Felipe Salomão[1], “a desconsideração da personalidade jurídica se apresenta como importante mecanismo de recuperação de crédito, combate à fraude e, por consequência, fortalecimento da segurança do mercado, em razão do acréscimo de garantias aos credores, atuando, processualmente, sobre o polo passivo da relação, modificando ou ampliando a responsabilidade patrimonial”.
E, de acordo com o artigo 50 do Código Civil, o abuso da personalidade jurídica, ensejador da sua própria desconsideração, é caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial[2].
Contudo, existem alguns casos concretos – não raros, diga-se – em que o próprio esquema fraudulento arquitetado pelos sócios dificulta (ou até mesmo impede) que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica seja aplicado por falta de provas do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial.
Imagine a seguinte situação: determinada empresa, sabendo ser devedora contumaz e executada em diversos processos judiciais, resolve encerrar suas atividades, suspender o atendimento ao cliente, retirar do ar o seu site e fechar sua loja física para, literalmente, sumir do mercado. Apesar disso, não é formalmente encerrada e permanece ativa perante a Junta Comercial – ou seja, o que parece, em uma primeira análise do caso, o patrimônio pessoal dos sócios permaneceria protegido por tempo indeterminado.
Ocorre que, para esse tipo de situação, além da possibilidade de requerer a desconsideração da personalidade jurídica (caso seja possível provar a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade), é o caso de ser reconhecida a dissolução irregular da empresa, hipótese na qual todos os ativos e passivos empresariais são automaticamente assumidos pelos sócios.
Isso porque “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar em seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes”, nos exatos termos do enunciado nº 435 da súmula do Superior Tribunal de Justiça.
E o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, aplicando o entendimento sumulado, decidiu recentemente que, sendo reconhecida a dissolução irregular da empresa, é cabível a inclusão dos sócios no polo passivo da ação judicial em sucessão processual (substituição da parte em razão da modificação da titularidade do direito material afirmado em juízo):
“CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. Empresa extinta irregularmente – Sucessão processual Possibilidade – Inteligência do art. 110 do CPC – Inclusão dos sócios no polo passivo da ação, em razão de responsabilidade prevista no artigo 1.080 do CC Decisão reformada Recurso provido”. (TJSP, Agravo de Instrumento nº 2227670-68.2018.8.26.0000, Desembargador Relator Paulo Pastore Filho, data de publicação: 17/04/2019)
Assim, seja pela desconsideração da personalidade jurídica, seja pelo reconhecimento da dissolução irregular da empresa, o patrimônio do sócio que busca praticar fraude por meio da pessoa jurídica poderá ser atingido para quitação dos débitos e passivos empresariais.
[1] Recurso Especial nº 1.729.554-SP
[2] A Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, que alterou a redação do referido art. 50 do CC, definiu expressamente que o “desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza” e que a confusão patrimonial é entendida como “a ausência de separação de fato entre os patrimônios caracterizada por (i) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou administrador ou vice-versa; (ii) transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e (iii) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”.
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