04/10/2017
O bem de família nada mais é do que o imóvel utilizado como residência da entidade familiar, decorrente de casamento, união estável, entidade monoparental, ou entidade de outra origem, e é protegido por previsões legais específicas, em lei especial e no Código Civil. A impenhorabilidade é o elemento fundamental do instituto do bem de família, sendo o bem, via de regra, resguardado contra execução por dívidas. Na realidade jurídica nacional faz-se interpretação extensiva da proteção da moradia para atingir o imóvel onde reside pessoa solteira, separada ou viúva (vide súmula 364 do STJ1).
O instituto como temos hoje surgiu por meio da lei 8.009/90, regulando o bem de família com o intuito de resguardar o imóvel que abriga o casal ou a entidade familiar, sobretudo aqueles que não têm ou informações suficientes para proteger juridicamente a sua moradia e de arcar com os custos de uma instituição voluntariada (bem de família legal), que, conforme se verá adiante, exige a elaboração de uma escritura pública e posterior registro na matrícula do imóvel para sua instituição, o que, por óbvio, exige o pagamento de emolumentos e custas devidas ao respectivo Cartório de Registro Civil e Cartório de Registro de Imóveis.
O Código Civil de 2002 trouxe consigo o instituto do bem de família voluntário no livro de “Direito de Família” e trata acerca da matéria nos artigos 1.711 a 1.722. Assim, em síntese, duas são as formas de bem de família previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
A primeira delas é o instituto do bem de família legal, que protege o imóvel próprio do casal ou da entidade familiar, sendo este impenhorável, não respondendo por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam. A proteção ao bem de família decorrente da legislação é automática, não havendo necessidade de nenhum ato por parte do proprietário do imóvel. Basta morar no imóvel e alegar a impenhorabilidade (o requisito “morar no imóvel” foi mitigado pelo STJ, conforme súmula 4862).
A lei é extremamente clara ao conceituar o bem de família:
Lei 8.009/90 – Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Ademais, importante mencionar que o bem da família legal não é inalienável. Inalienável é que o que não pode voluntária ou coercitivamente ser excluído do patrimônio de alguém; isto nem de longe é igual a se dizer que certo bem “não responderá por qualquer tipo de dívida”. O devedor pode, a qualquer momento, voluntariamente, vender o imóvel de residência próprio, destinado à moradia de sua família para pagar dívidas. Em suma, os bens abrangidos pela impenhorabilidade legal continuam sempre e plenamente alienáveis3.
A jurisprudência dos tribunais pátrios é pacífica:
EXECUÇÃO – IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA.
– Art. 1º da Lei nº 8.009/90 – Agravantes que demonstraram que utilizam o imóvel constrito como moradia, sendo caso de se conferir a proteção do bem de família – RECURSO PROVIDO4.
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APELAÇÃO CIVIL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. EMBARGOS À PENHORA. BEM DE FAMÍLIA CARACTERIZADO. IMPENHORABILIDADE. Considera-se bem de família um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. Demonstrado tratar do único bem do embargante e que nele é fixada a residência, o imóvel está protegido da penhora. APELO PROVIDO5.
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EMBARGOS DE TERCEIRO. IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA.
Alegação de que o imóvel constitui bem de família. Imóvel em nome da pessoa jurídica. ADMISSIBILIDADE: Os documentos dos autos mostram que a constrição judicial recaiu sobre imóvel onde reside sócio da pessoa jurídica executada. Caracterização do bem de família, nos termos da Lei nº 8.009/90. É entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça a possibilidade da proteção do bem de família, no caso de sócio que reside em imóvel registrado em nome da pessoa jurídica. Sentença reformada. RECURSO PROVIDO6.
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AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO FISCAL – INDISPONIBILIDADE DE BENS – MEDIDA CAUTELAR QUE VISA ASSEGURAR PENHORA FUTURA – INCIDÊNCIA DAS MESMAS RESTRIÇÕES RELATIVAS À IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA – BEM DE FAMÍLIA – ÚNICO IMÓVEL – MORADIA PERMANENTE DO CASAL E DOS FILHOS – IMPENHORABILIDADE
1. Discute-se no presente recurso ser, ou não bem de família o imóvel sobre o qual incidiu decisão de indisponibilidade de bens, proferida em Ação de Execução Fiscal.
2. A indisponibilidade prevista no art. 185-A, do Código Tributário Nacional, tem caráter cautelar ao Processo de Execução, de modo a posteriormente proporcionar a penhora, daí porque esta medida também deve respeitar a impenhorabilidade relativa ao bem de família. Precedentes do STJ7.
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DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. LEGITIMIDADE DA EMPRESA INDIVIDUAL PARA POSTULAR A DESCONSTITUIÇÃO DA PENHORA REALIZADA SOBRE O BEM DE FAMÍLIA PERTENCENTE AO EMPRESÁRIO. CONFUSÃO DO PATRIMÔNIO DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL COM O DA RESPECTIVA PESSOA FÍSICA. PRECEDENTES. PROVAS NOS AUTOS QUE CORROBORAM A ALEGAÇÃO DE QUE O IMÓVEL PENHORADO É UTILIZADO COMO RESIDÊNCIA FAMILIAR PELO EXECUTADO E SUA ESPOSA. IMPENHORABILIDADE. DESCONSTITUIÇÃO DO GRAVAME QUE SE IMPÕE. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA VERIFICADA NOS AUTOS DOS EMBARGOS DO DEVEDOR. ÔNUS CORRETAMENTE RATEADOS EM PROPORÇÕES IGUAIS ENTRE OS LITIGANTES. RECURSO DESPROVIDO8.
Em três casos sob patrocínio do escritório foi possível remover penhoras constantes na matrícula de um imóvel considerado bem de família legal, para tanto foram apresentadas manifestações com base na Lei 8.009/90 em conjunto com toda documentação comprobatória de que o imóvel é residência do executado e de sua família, oportunidade na qual os juízes das respectivas causas determinaram o cancelamento das penhoras:
Destarte, de acordo com o disposto no art. 1º, caput, da Lei n. 8.009/90, o imóvel em questão é impenhorável e não responde por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, sendo que, nos termos do art. 3º, I, do mesmo diploma legal, a impenhorabilidade somente não abrange tal bem se o processo de execução for movido “em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias”, o que não é o caso dos autos.
Decorrido in albis o prazo legal, oficie-se o juízo deprecado com cópia desta decisão e do trânsito em julgado, solicitando o cancelamento da penhora e devolução da carta precatória9.
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[…] Contudo, verifico, que houve arguição da impenhorabilidade do imóvel sob alegação de bem de família, e, em função do resguardo da meação do imóvel.
Por se tratar de matéria de ordem pública, passo a analise da alegação da impenhorabilidade do imóvel onde reside o executado.
Destarte, consta nas declarações de bens do executado que este é o seu únicoimóvel, tendo sido inclusive constatado pelo Sr. Oficial de Justiça que o mesmo utiliza o imóvel como residência o que enseja reconhecimento da instituição do bem de família, resguardando a função da moradia exercida comprovadamente nos autos.
Há, portanto, que se resguardar a moradia do indivíduo sob a luz do princípio da dignidade da pessoa humana, não se tratando de imóvel de luxo, ainda que valioso e bem localizado.
[…]
No caso concreto se verifica situação análoga, onde se pode destacar que há necessidade de resguardo do direito de moradia, sobrepondo-se ao direito de credores receber o seu crédito.
Proceda-se com o cancelamento da averbação do arresto/penhora, oficiando-se ao Cartório de Registro de Imóveis respectivo10.
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Com efeito, a Lei nº 8.009/90, que trata da impenhorabilidade do bem de família, dispõe, em seu art. 1º, que o imóvel utilizado pela entidade familiar como moradia é impenhorável, não respondendo por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam.
Da análise do processado, tem-se que o imóvel de matrícula 105.356, do 2º CRI, de São Paulo, de propriedade do sócio executado, … trata-se do local de sua moradia, conforme se verifica dos documentos de fls. 160/168 e certidão do oficial de justiça de fl.179.
[…]
Destarte, julgo procedentes os Embargos à Execução, para declarar insubsistente a penhora recaída sobre o bem imóvel de matrícula 105.356, do 2º CRI de São Paulo, pois implementados os requisitos da Lei 8009/9011.
Já o bem de família voluntário é aquele cuja destinação decorre da vontade do seu instituidor, integrante da própria família, visando à proteção do patrimônio contra dívidas. O Código Civil permite que qualquer bem seja gravado como bem de família, desde que não ultrapasse o valor de um terço do patrimônio líquido existente no momento da afetação.
CC – Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial.
Na parte final do dispositivo acima transcrito é possível perceber que o legislador fez menção expressa “a lei especial”, referindo-se a lei 8.009/90, com a intenção de deixar claro que ela subsiste e que suas disposições devem ser preservadas12. Segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo, a instituição do bem de família voluntário não obsta o reconhecimento do bem de família legal, pois qualquer bem pode ser alvo da proteção instituída pelo bem de família voluntário, desde que atendidos os requisitos previstos no CC, e a sua instituição não afasta a incidência da proteção prevista na Lei 8.009/90, justamente o que dispõe a parte final do artigo supracitado, portanto, é plenamente possível ter dois ou mais imóveis protegidos contra dívidas, dependendo, é claro, do tamanho patrimônio do devedor.
APELAÇÃO. EMBARGOS DE TERCEIROS. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. Argumentos do apelante que não convencem. Comprovação nos autos de que embargante esposo e filhos residem no imóvel constrito Bem de família legal. O fato de ter havido a instituição de bem de família voluntário em relação a outro imóvel de propriedade da embargante não é suficiente para, por si só, afastar a proteção dada ao bem de família legal, nos exatos termos do que dispõe o art. 1.711 do Código Civil. Ainda que o bem penhorado não seja o único imóvel de propriedade do embargante, prevalece o bem de família Precedente deste e. Tribunal de Justiça. SENTENÇA MANTIDA RECURSO DESPROVIDO13.
Diferentemente daquele previsto na lei especial (lei n. 8.009/90), o bem de família voluntário somente pode ser instituído por intermédio de escritura pública ou testamento do próprio integrante da família ou de terceiro, o que, conforme mencionado, envolve o pagamento de custas, é o que prevê a lei 6.015/73:
Art. 167 – No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos.
I – o registro:
1) da instituição de bem de família;
Art. 168. No Registro de imóveis serão feitas:
I – a inscrição:
a) dos instrumentos públicos de instituição de bem de família;
Art. 261. A instituição do bem de família far-se-á por escritura pública, declarando o instituidor que determinado prédio se destina a domicílio de sua família e ficará isento de execução por dívida.
A jurisprudência é muito clara ao distinguir bem de família legal e voluntário:
EXECUÇÃO. PENHORA DE IMÓVEL. BEM DE FAMÍLIA. INTELIGÊNCIA DA LEI N. 8.009/90. AFASTAMENTO DO CC. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. ARGUIÇÃO A QUALQUER TEMPO. As noções de bem de família voluntário, previsto no CC, e de bem de família legal, disciplinado pela Lei n. 8.009/90, não se confundem, sendo que só aquele exige que a parte institua bem de família por meio de escritura pública ou testamento, ao passo que o bem de família legal não exige qualquer conduta por parte da entidade familiar, apenas que seja o único imóvel utilizado pelo casal ou entidade familiar, ou, no caso de haver vários imóveis, ser aquele de menor valor. Ademais, como a impenhorabilidade decorrente do bem de família é absoluta, tem-se que pode ser invocada a qualquer tempo ou grau de jurisdição, visto ser matéria de ordem pública14.
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EXECUÇÃO. IMPENHORABILIDADE DE IMÓVEL. BEM DE FAMÍLIA LEGAL. BEM DE PROPRIEDADE E RESIDÊNCIA DO DEVEDOR E DE SUA FAMÍLIA. REGÊNCIA PELA LEI Nº 8.009/90. RECURSO PROVIDO.
1. Tratando-se de imóvel de propriedade e moradia da família do executado, resta caracterizada a impenhorabilidade estabelecida no art. 1º, da Lei nº 8.009/90. Bem de família legal.
2. Instituto que não se confunde com o bem de família voluntário, constituído por ato de vontade do proprietário e regido pelos arts. 1.711 a 1.722, do Código Civil. Desnecessidade de formalização da destinação do imóvel junto ao Cartório de Registro de Imóveis.
3. Desnecessidade da prova de que o imóvel em que reside a entidade familiar seja o único. Exegese do parágrafo único, do artigo 5º, da Lei nº 8.009/90. Existência de outro imóvel não afasta a incidência da Lei em foco, o disposto no aludido parágrafo determina apenas que, se a família residir em mais de um imóvel, a impenhorabilidade recairá somente sobre o de menor valor. Exequente que, entretanto, não comprovou que o devedor reside em mais de um imóvel15.
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EMBARGOS DE TERCEIRO. BEM DE FAMÍLIA. LEI 8.009/90. REGISTRO. NECESSIDADE. INEXISTÊNCIA. A proteção da lei 8.009/90 (bem de família legal) prescinde de registro junto ao Cartório de Imóveis e não se confunde com o denominado “bem de família voluntário” regulamentado nos arts. 1.711 a 1.722 do Código Civil. O primeiro é assegurado pelo próprio Estado e tem natureza processual e encontra fundamento de validade no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana que assegura, a todos, condições mínimas para se viver forma decente. O segundo é natureza material e é instituído pelo próprio proprietário afim de garantir a impenhorabilidade e também a inalienabilidade do bem. Agravo a que se nega provimento se dá provimento16.
EFEITOS PRÁTICOS
O imóvel utilizado como residência da família, portanto, é considerado como bem de família independentemente de qualquer registro prévio segundo a lei n. 8.009/90, sendo, pois, impenhorável, não respondendo por qualquer dívida, salvo as hipóteses previstas na referida lei.
O problema é que diante da ausência de registro, não há como terceiros presumirem que o imóvel é bem de família, o que acarreta muitas vezes no registro da penhora diante da ausência do efeito publicístico gerado pelo competente registro na matrícula do imóvel (bem de família voluntário).
Antes de determinar a penhora do imóvel indicado por um credor, geralmente os juízes intimam a parte a juntar aos autos a matrícula atualizada do imóvel, e não constando qualquer impedimento, autorizam a expedição do termo de penhora. O Cartório de Registro de Imóveis por sua vez, em obediência à ordem judicial, ao verificar que não há qualquer óbice para registro, acaba por registrar a penhora, ignorando o fato de que o bem é de família, o que sem sombra de dúvidas causa transtornos ao proprietário e à sua família.
Neste caso específico o proprietário do bem de família tem duas opções, apresentar manifestação nos autos juntando toda documentação comprobatória de que reside no imóvel e que, portanto, é bem de família (i) visando impedir a autorização da expedição do termo de penhora; ou caso já registrada na matrícula do imóvel, (ii) requerendo a expedição de termo de cancelamento da penhora.
Ao registrar a escritura pública que constitui o imóvel como sendo de família na sua respectiva matrícula (bem de família voluntário) o proprietário em tese cria duas barreiras: (i) o juiz, ao analisar o pedido de penhora feito por um credor, irá verificar que na matrícula consta que o imóvel é bem de família, e, portanto, não irá autorizar a penhora, nos termos do art. 832 do Código de Processo Civil; (ii) caso o juiz não se atente à disposição constante na matrícula e determine a expedição do termo de penhora, o credor, ao tentar registra-lo no Cartório de Registro de Imóveis, muito provavelmente será obstado de prosseguir com o registro, pois o CRI se negará a registrar a penhora diante da expressa previsão de que o bem é de família.
Isso sem mencionar o desestímulo que causará aos credores quando da busca de bens do devedor ao constatarem que na matrícula do imóvel perseguido há expressa menção de que é bem de família.
Importante mencionar também que o art. 1715 do Código Civil prevê que o bem de família voluntário fica isento de execução por dívidas posteriores à sua instituição, “a existência de dívidas não impede a instituição do bem de família, porquanto os benefícios da gravação não gerarão efeitos com relação aos débitos preexistentes. As dívidas que não tocarão o bem de família serão aquelas adquiridas após a constituição deste, uma vez que não é a intenção do legislador dar guarida à fraude ou má-fé, em prejuízo do credor17”.
Importante observar que o art. 1711 do CC é expresso ao resguardar o disposto em lei especial, no caso a lei 8.009/90, ou seja, quando o caso é de bem de família legal, quando o proprietário reside no imóvel, não há a necessidade de registro na sua matrícula para protegê-lo de eventuais penhoras, a proteção é automática. Caso o proprietário opte por instituir o bem de família voluntário ele ainda é resguardado pela lei especial, caso resida no imóvel.
Dessa forma, ao fazer constar na matrícula do imóvel, mesmo que este seja de fato residência do proprietário e, portanto, impenhorável, pode haver eventual alegação do credor de que o proprietário incorre em má-fé e tenta frustrar a execução, vez que a dívida seria anterior à constituição do bem de família voluntário, caso o proprietário já tenha um processo ajuizado contra si.
Diante desse cenário o proprietário de qualquer forma terá o trabalho de juntar aos autos a documentação demonstrando que o imóvel é sua residência e de sua família, requerendo ao menos a aplicação da lei 8.009/90, frise-se, em casos em que a dívida for anterior à constituição do bem de família voluntário, sob pena de não conseguir livrar seu imóvel da execução:
EMBARGOS DE TERCEIRO. PENHORA DE SUPOSTO BEM DE FAMÍLIA. AUSÊNCIA DE PROVA DO ENQUADRAMENTO DO BEM NA LEI N.º 8.009/1990 OU DE INSTITUIÇÃO DE BEM DE FAMÍLIA VOLUNTÁRIO. IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO. UTILIZAÇÃO DO IMÓVEL PARA RESIDÊNCIA DA FAMÍLIA NÃO COMPROVADA. DESPROVIMENTO.
Cabe ao devedor o ônus de provar que seu imóvel preenche os requisitos necessários ao enquadramento como bem de família. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça18.
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DÚVIDA IMOBILIÁRIA – PRETENSÃO DE INSTITUIÇÃO DE BEM DE FAMÍLIA VOLUNTÁRIO – EXISTÊNCIA DE AVERBAÇÕES PREMONITÓRIAS NA MATRÍCULA DO IMÓVEL – INEFICÁCIA DA IMPENHORABILIDADE EM RELAÇÃO A DÍVIDAS ANTERIORES – DÚVIDA IMPROCEDENTE.
Tratam os autos de dúvida imobiliária suscitada pelo 15º Registrador de Imóveis da Capital, por requerimento de Moyses Athia Neto, porque o registrador apresentou recusa baseada na existência de averbações premonitórias dando conta de execuções por títulos extrajudiciais, o que impediria a instituição do bem de família.
[…]
A impenhorabilidade, que decorrerá da instituição, não alcança as execuções por dívidas anteriores a ela, pelo que não se apresenta aceitável que a noticiada existência de dívidas anteriores, objeto de execuções aparelhadas, obste a instituição do bem de família.
Não se entrevê, com a instituição, qualquer prejuízo a terceiros, salientando-se que o bem não ficará a salvo de responder pelas dívidas anteriores à instituição, que será ineficaz em relação a estas.19
Administrativamente o credor pode ainda impugnar o registro da escritura pública de bem de família na matrícula do imóvel no prazo previsto na Lei de Registros Públicos:
Art. 262. Se não ocorrer razão para dúvida, o oficial fará a publicação, em forma de edital, do qual constará:
I – o resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e característicos do prédio;
II – o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta (30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito e perante o oficial.
Art. 264. Se for apresentada reclamação, dela fornecerá o oficial, ao instituidor, cópia autêntica e lhe restituirá a escritura, com a declaração de haver sido suspenso o registro, cancelando a prenotação.
§ 1° O instituidor poderá requerer ao Juiz que ordene o registro, sem embargo da reclamação.
§ 2º Se o Juiz determinar que proceda ao registro, ressalvará ao reclamante o direito de recorrer à ação competente para anular a instituição ou de fazer execução sobre o prédio instituído, na hipótese de tratar-se de dívida anterior e cuja solução se tornou inexequível em virtude do ato da instituição.
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Bem de família – reclamação realizada após publicação do edital – razões da reclamação que devem se ater à existência de credores do instituidor ou aos requisitos formais da escritura – ação ainda em trâmite, sem trânsito em julgado, não é suficiente para obstar o registro da instituição – possibilidade de pedido de anulação por existência de dívida anterior ressalvada na Lei de Registros Públicos, mas deve ocorrer em rito ordinário, com contraditório e ampla defesa – pedido procedente20.
Há ainda a possibilidade de o Cartório de Registro de Imóveis, mesmo constando na matrícula que o imóvel é bem de família, proceder com o registro da penhora, visando cumprir ordem judicial o que desvirtua complemente o instituto:
PENHORA DE BEM DE FAMÍLIA – ORDEM JUDICIAL – CANCELAMENTO DA CONSTRIÇÃO PELA PRÓPRIA AUTORIDADE – NÃO OCORRÊNCIA DE FALTA FUNCIONAL – IMPROCEDÊNCIA
Trata-se de pedido de providências iniciado pelo Oficial do 15º Registro de Imóveis da Capital, comunicando que procedeu a averbação nº 7 da matrícula nº 166.564, de penhora sobre imóvel por ordem da Justiça do Trabalho, embora tivesse a informação, em seu registro nº 6, de que este era bem de família, devidamente consolidado com o documento de nº 14.466 no Livro Três Registro Auxiliar. Juntou documentos às fls. 05/18. Instado a se manifestar, o MM. Juízo da 16ª Vara do Trabalho informou ter exarado despacho (fl. 31) reconsiderando a ordem e determinando a expedição de mandado de cancelamento da referida penhora. Cópia do mandado foi juntada aos autos (fl. 55). O Oficial ainda não havia recepcionado o mandado de cancelamento de penhora até o dia 13 de maio último. O Ministério Público opinou pelo arquivamento do feito (fls.67/68).
[…]
Mesmo sendo o imóvel penhorado bem de família, o registrador agiu de forma correta ao qualificar positivamente o título judicial expedido pela 16ª Vara do Trabalho nos autos de Execução Trabalhista (processo nº 000.124825.2015.020016).
Estando o título judicial formalmente em ordem, e contendo ordem judicial expressa, não resta outra alternativa ao oficial senão permitir o seu ingresso. A cautela em remeter a questão a este juízo é louvável e deve ser mantida em casos análogos, para que sobre o oficial não recaia qualquer tipo de responsabilidade.
Do mais, são recorrentes os julgados de instâncias superiores no sentido de que as determinações dos juízos trabalhistas devem ser cumpridas independentemente da existência de óbices materiais presentes nas matrículas21.
Em suma, o imóvel de residência do devedor é impenhorável, ponto final. Isso não é discutível. Contudo, falando em efeitos práticos, em relação aos processos executórios os quais o proprietário está no polo passivo, pode haver eventual discussão acerca do art. 1715 do Código Civil (frise-se, mera discussão) e, inclusive, mesmo após a instituição do bem de família voluntário, existe a possibilidade de que o Cartório de Registro de Imóveis mesmo assim registre a penhora acatando ordem judicial caso o proprietário não impeça que seja proferida decisão nesse sentido (apresentando manifestação e documentação nos autos). Ou seja, a blindagem automática almejada pelo registro na matrícula do imóvel de residência do devedor não é 100% segura no tocante às dividas já constituídas, pois de qualquer forma o proprietário terá que demonstrar que reside no imóvel penhorado/alvo de penhora caso o credor insista, mas com toda certeza será um desestimulo aos credores na persecução do imóvel.
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1 STJ – Súmula 364 – Conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas.
2 STJ – Súmula 486 – É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família.
3 CZAJKOWSKI, Rainer – A impenhorabilidade do bem de família, comentários à Lei 8.090/90, 3ª Edição, 1998, pg. 18.
4 TJSP Apelação 2100807-72.2015.8.26.0000, Des. Rel. SÉRGIO SHIMURA, 23ª Câmara de Direito Privado, Dje. 08/09/2015.
5 TJRS – Apelação Cível Nº 70068479534, Décima Sétima Câmara Cível, Des. Rel. GELSON ROLIM STOCKER, Julgado em 14/04/2016.
6 TJSP – 1007380-59.2014.8.26.0554, Des. Rel. ISRAEL GOÉS DOS ANJOS, 37 Câmara de Direito Privado, Dje. 13/11/2014.
7 TJMS – AI n. 1411552-45.2015.8.12.0000, Rel. Des. PAULO ALBERTO DE OLIVEIRA, 2ª Câmara Cível, Dje. 26/01/2017.
8 TJRN – AC n. 2015.01048-9, da 2a Câmara Cível, Rel. RICARDO TINOCO – juiz convocado, j. 08.12.2015.
9 TRT 18 – Proc. n. 0093200-84.2009.5.18.0013, Juíz Pedro Henrique Barreto Menezes, 13ª Vara do Trabalho de Goiânia/GO, julg. 06/05/2016.
10 TJSP – Proc. n. 0164281-52.2009.8.26.0100, Juíza Priscila Buso Faccinetto, 40ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo, julg. 04/10/2013.
11 TRT 2 – Proc. n. 1223-2015, Juíza Cristiane Serpa Pansan, 6ª Vara do Trabalho de São Paulo, julg. 28/08/2017.
12 CARVALHO FILHO, Milton Paulo, Código Civil Comentado, Coordenador Min. Cezar Peluso, 7ª ed., 2013, pg. 2000.
13 TJSP – Apelação Cível n. 1008819-28.2014.8.26.0224, Des. Rel. SERGIO GOMES, 37ª Câmara de Direito Privado, Dje. 28/10/2014.
14 TJMG – Agravo de Instrumento n. 0284200-70.2010.8.13.0000, Rel. Des. ARNALDO MACIEL, julg. 17.08.2010.
15 TJSP – Agravo de Instrumento n. 2166585-23.2014.8.26.0000, Rel. Des. ALEXANDRE LAZZARINI, 9ª Câmara de Direito Privado, Dje. 25/11/2014.
16 TRT 2 – Agravo 01906000920065020447, Rel. Des. FLÁVIO VILLANI MACÊDO, 17ª Turma, Dje. 24/07/2015.
17 Idem, pg. 2006.
18 TJPB – Apelação Cível n. 00005505920108150031, 4ª Câmara Especializada Cível, Des. Rel. ROMERO MARCELO DA FONSECA OLIVEIRA , julg. 12.04.2016.
19 TJSP – Proc. n. 0030394-64.2012.8.26.0100, Juiz MARCELO MARTINS BERTHE, 1ª Vara de Registros Públicos, julg. 30.07.2012.
20 TJSP – Proc. n. 1095836-52.2015.8.26.0100, Juíza TÂNIA MARA AHUALLI, 1ª Vara de Registros Públicos, Dje. 22/02/2016.
21 TJSP – Proc. n. 0074591-70.2013.8.26.0100, Juíza TANIA MARA AHUALLI, 1ª Vara de Registros Públicos, Dje. 22/06/2015.
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