27/08/2015
I. Objeto:
Trata-se de estudo cujo escopo é analisar a possibilidade do autor da herança gravar a totalidade de seus bens com as cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade, e se tais cláusulas são consideradas uma maneira de blindagem patrimonial do herdeiro-devedor, que receberá os bens gravados com essas cláusulas por ocasião da morte do testador.
II. Preliminarmente. Definição de Herança, Testamento e Cláusulas restritivas:
Herança é o conjunto de direitos e obrigações que se transmitem, em razão da morte, a uma ou mais pessoas que sobrevivem ao falecido[1]. De maneira mais simples, a herança nada mais é do que o patrimônio da pessoa falecida, também chamada de autor da herança.
Testamento é o ato unilateral, solene e revogável, por meio do qual uma pessoa dispõe, para depois da sua morte, de todos os seus bens ou de parte deles. Em que pese tenha conteúdo eminentemente patrimonial, são admitidas as disposições de vontade de caráter não patrimonial – v.g. reconhecimento de filiação, instituição de legatário, destinação dos bens, etc. -, conforme disposição do parágrafo 2º, do artigo 1.857, do Código Civil[2].
Por isso, o testamento é negócio jurídico que em que pese seja realizado em vida, só produzirá efeitos após a morte do autor da herança. Desta feita, o testamento só poderá ser impugnado/contestado pelo (s) interessado (s) quando passar a produzir os seus efeitos.
Cláusula restritiva é a imposição, feita no testamento, de determinada restrição aos direitos dos herdeiros sobre os bens que serão recebidos por ocasião do falecimento do testador. Tem caráter protetivo e é imposta para tornar permanente a propriedade do bem aos herdeiros, sem a possibilidade de dilapidação do patrimônio do de cujus em razão das dívidas eventualmente contraídas pelo herdeiro.
As cláusulas restritivas podem ser de inalienabilidade, impenhorabilidade e/ou incomunicabilidade. As duas primeiras impedem a alienação do bem e a sua responsabilização pelo pagamento das dívidas contraídas pelo herdeiro; e a última impede a comunicação do bem com o cônjuge do herdeiro, sendo possível ao testador impor apenas uma ou todas as cláusulas restritivas.
Registre-se que se o testador estabelecer somente a cláusula de inalienabilidade ela importará na impenhorabilidade e na incomunicabilidade, conforme disposto no artigo 1.911 do Código Civil[3] e na Súmula 49 do Supremo Tribunal Federal[4]. No entanto, se apenas forem estabelecidas as cláusulas de impenhorabilidade e/ou incomunicabilidade, elas não importarão da inalienabilidade.
Conceituados os termos acima, que são de suma importância para o entendimento da matéria trazida no presente memorando, passemos a analisar a possibilidade das cláusulas restritivas serem impostas para proteção patrimonial dos herdeiros.
III. Imposição de cláusulas restritivas. Legítima dos Herdeiros. Exceção:
Nos termos do artigo 1.846 do Código Civil, se houver descendente, ascendente ou cônjuge sucessível – chamado no Código Civil de herdeiro necessário -, o autor da herança não terá plena liberdade para testar, podendo dispor somente de metade dos bens, que é a parte disponível. A outra metade, obrigatoriamente, pertencerá aos herdeiros necessários.
Esclarece-se. Os herdeiros necessários têm direito a uma porção da herança, denominada legítima. Segundo o artigo 1.847 do Código Civil, a legítima será calculada “sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão, abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a colação[5]”.
Desta feita, havendo herdeiros necessários, o autor da herança não poderá testar todo o seu patrimônio, mas apenas e tão somente a metade disponível, que poderá ter o destino, ônus e ser entregue a quem o testador quiser. É sobre essa parte que a vontade do testador terá total eficácia e validade.
Isso porque, no que diz respeito à legítima, o testador só poderá onerá-la com as cláusulas restritivas se houver justa causa declarada no próprio testamento. Inteligência do artigo 1.848 do Código Civil:
Art. 1.848, CC: Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.
A bem dizer, se o testador não justificar as razões que o levaram a estabelecer as cláusulas restritivas sobre todos os bens que serão deixados por ocasião de sua morte, apenas a parte disponível da herança será considerada inalienável, incomunicável e impenhorável, porquanto para que possam recair sobre a legítima, o legislador impôs uma condição ao testador, que se não for por ele observada, não terá eficácia.
Cumpre deixar registrado que a justa causa só passou a ser exigida com a vigência da Lei n. 10.406/2002 (atual Código Civil), a fim de se evitar a redução da legítima a total inutilidade – já que segundo a doutrina da época, o patrimônio não poderá circular livremente na sociedade – tal como frequentemente ocorria com o Código de Clóvis Beviláqua (Lei 3.071/1916), que permitia a imposição das restrições sobre a totalidade dos bens sem qualquer justificativa do testador.
Nessa esteira, Orlando Gomes ensina que “se a instituição da restrição, por si, não é uma aberração jurídica, porque até útil sob determinadas circunstâncias, clausular a legítima contraria a própria essência da reserva legal aos herdeiros necessários. Se existe um patrimônio reservado a certos herdeiros, os bens nele contidos devem ser transmitidos sob as mesmas condições que estavam em vida do disponente”[6], razão pela qual o dispositivo legal acabou por ser alterado, para que o testador fosse obrigado a justificar o estabelecimento das cláusulas restritivas na legítima.
Para os testamentos lavrados na vigência da Lei 3.071/1916, o legislador determina que “aplica-se o disposto no caput do art. 1.848, quando aberta a sucessão no prazo de um ano após a entrada em vigor deste Código, ainda que o testamento tenha sido feito na vigência do anterior; se, no prazo, o testador não aditar o testamento para declarar a justa causa de cláusula aposta à legítima, não subsistirá a restrição”[7]. Esta determinação é seguida pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme julgado abaixo:
"Direito civil e processual civil. Sucessões. Recurso especial. Arrolamento de bens. Testamento feito sob a vigência do CC/16. Cláusulas restritivas apostas à legítima. Inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. Prazo de um ano após a entrada em vigor do CC/02 para declarar a justa causa da restrição imposta. Abertura da sucessão antes de findo o prazo. Subsistência do gravame. Questão processual. Fundamento do acórdão não impugnado.
– Conforme dicção do art. 2.042 c/c o caput do art. 1.848 do CC/02, deve o testador declarar no testamento a justa causa da cláusula restritiva aposta à legítima, no prazo de um ano após a entrada em vigor do CC/02; na hipótese de o testamento ter sido feito sob a vigência do CC/16 e aberta a sucessão no referido prazo, e não tendo até então o testador justificado, não subsistirá a restrição.
– Ao testador são asseguradas medidas conservativas para salvaguardar a legítima dos herdeiros necessários, sendo que na interpretação das cláusulas testamentárias deve-se preferir a inteligência que faz valer o ato, àquela que o reduz à insubsistência; por isso, deve-se interpretar o testamento, de preferência, em toda a sua plenitude, desvendando a vontade do
testador, libertando-o da prisão das palavras, para atender sempre a sua real intenção.
– Contudo, a presente lide não cobra juízo interpretativo para desvendar a intenção da testadora; o julgamento é objetivo, seja concernente à época em que dispôs da sua herança, seja relativo ao momento em que deveria aditar o testamento, isto porque veio à óbito ainda dentro do prazo legal para cumprir a determinação legal do art. 2.042 do CC/02, o que não ocorreu, e, por isso, não há como esquadrinhar a sua intenção nos 3 meses que remanesciam para cumprir a dicção legal.
– Não houve descompasso, tampouco descumprimento, por parte da testadora, com o art. 2.042 do CC/02, conjugado com o art. 1.848 do mesmo Código, isto porque foi colhida por fato jurídico – morte – que lhe impediu de cumprir imposição legal, que só a ela cabia, em prazo que ainda não se findara.
– O testamento é a expressão da liberdade no direito civil, cuja força é o testemunho mais solene e mais grave da vontade íntima do ser humano.
– A existência de fundamento do acórdão recorrido não impugnado, quando suficiente para a manutenção de suas conclusões em questão processual, impede a apreciação do recurso especial no particular.
Recurso especial provido."
(Recurso Especial Nº 1.049.354 – SP. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça. J. 18/08/2009).
IV. Justa causa. O que é?:
A justa causa apontada no artigo 1.848 do Código Civil é um conceito subjetivo, aberto e indeterminado, cabendo ao juiz, ao analisar o caso concreto decidir pela sua eficácia ou não, caso haja impugnação pelos herdeiros ou terceiros interessados quando o inventário for aberto.
Evidentemente que as razões do testador devem ser suficientemente claras, descrevendo seus motivos de forma mais minuciosa possível, sob pena de sua vontade não perdurar no caso de eventual impugnação.
A respeito do tema, Alexandre Laizo Clápis, em artigo publicado na Revista do Direito Imobiliário n. 57, afirma que a indicação da causa não é único requisito exigido pelo art. 1.848 do CC/2002 para a imposição das cláusulas restritivas. Referido dispositivo legal determina que ela (causa), seja justa, com razão suficientemente séria e legítima para que se sustente em eventual impugnação feita pelo próprio herdeiro ou por terceiros interessados (cônjuges, credores etc.). Assim, ressalvadas as opiniões contrárias, não basta declaração de que as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade são impostas para preservação ou segregação do patrimônio, pois estas são as finalidades substantiva e primária das referidas cláusulas restritivas. A motivação deverá guardar correlação com as particularidades e circunstâncias que envolvem instituidor e instituído.[8]
Portanto, sendo um conceito meramente subjetivo, recomenda-se que a justa causa seja suficientemente clara, a fim de que em eventual impugnação, o magistrado possa decidir pela sua validade, mantendo, via de consequência, as cláusulas restritivas estabelecidas na legítima pelo testador.
V. Existência de ações de execução em face do Herdeiro. Penhora dos bens recebidos por herança:
No caso de existirem ações de execução em face do herdeiro, e os únicos bens de sua propriedade forem aqueles deixados pelo de cujus, os credores só poderão penhorá-los se não estiverem gravados com as cláusulas de inalienabilidade e/ou impenhorabilidade. Isso, inclusive, é o que dispõe o artigo 649, I, do Código de Processo Civil:
"Art. 649, CPC: São absolutamente impenhoráveis:
I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução."
No mesmo sentido, os Tribunais de Justiça Pátrios já se manifestaram acerca do tema:
"EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – BEM IMÓVEL – COM CLÁUSULA DE IMPENHORABILIDADE – CONVERSÃO ARRESTO EM PENHORA – IMPOSSIBILIDADE. Tratando-se de bem gravado com cláusula de impenhorabilidade nula é a penhora que sobre ele recai. Conforme determinado no art. 649, inciso, I do CPC, são absolutamente impenhoráveis os bens inalienáveis e os declarados por ato voluntário."
(AGRAVO DE INSTRUMENTO-CV Nº 1.0084.10.002408-6/001. 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Rel. Des.(a) Maria Luiza Santana Assunção. J. 22/04/2015).
"EMENTA: Embargos à penhora. Constrição que recaiu sobre imóvel doado. Bem, todavia, clausulado. Enquanto estiverem vivos os donatários, afora as exceções legais, não é possível a penhora sobre imóvel gravado com cláusula de impenhorabilidade. Ação julgada procedente. Recurso provido para esse fim."
(Apelação nº 0001431-42.2010.8.26.0318. 15ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Rel. Des. Araldo Telles. J. 27/11/2012).
Ou seja, tendo o testador estabelecido as cláusulas de inalienabilidade e/ou impenhorabilidade dos bens deixados por ocasião da sua morte, o credor não poderá ter seu crédito satisfeito com aqueles bens, ainda que sejam os únicos de propriedade dos herdeiros. Essa impossibilidade tem por objetivo respeitar a vontade do falecido, não podendo os direitos do credor se sobrepor a vontade do testador.
Mas, como dito alhures, se o testador não tiver justificado a causa para imposição da cláusula restritiva, o herdeiro receberá a parte que lhe é cabível por lei – a legítima – livre de qualquer ônus, e sobre essa parte poderá recair a penhora para satisfação dos créditos que são objeto de ação de execução. Para isso, o credor terá de ser diligente para que ao tomar conhecimento do falecimento do autor da herança, obtenha cópia do testamento parra averiguar a possibilidade da penhora da legítima do herdeiro-devedor.
A despeito disso, o Egrégio Tribunal Justiça do Estado de São Paulo já se manifestou:
“Execução Penhora de direitos sucessórios do executado – Invocação de cláusula de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade sobre a legítima prevista no testamento público deixado pela autora da herança Descabimento Testamento feito em 2001, sob a vigência do Código Civil de 1916, vindo a “de cujus” a falecer em 2.011, sob a vigência do novo Código Civil Incidência, por isso, das regras previstas nos artigos 1.848 e 2.042, c/c art. 1.787, de novo diploma legal – Cláusula restritiva da legítima prevista neste testamento que passou a depender de aditamento para declarar a justa causa desta restrição, a ser efetuado no prazo de um ano após a vigência do novo Código Civil, para subsistir, consoante previsto no art. 2.042, parte final Aditamento não realizado neste prazo Insubsistência, por isso, de referida cláusula Constrição determinada que deve ser mantida Recurso improvido.”
(Agravo de Instrumento nº 2010618-82.2014.8.26.0000. 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo. Rel. Des. Thiago Siqueira. J. 28/03/2014).
Em outras palavras, o credor poderá ter seu crédito satisfeito mediante a penhora da legítima, e nesse caso, o herdeiro-devedor não poderá se beneficiar com a alegação das cláusulas restritivas que eventualmente tenham recaído sobre os bens deixados pelo testador, porquanto ausente a justa causa.
Ainda que assim não fosse, caso os bens deixados pelo de cujus ao herdeiro devedor sejam considerados impenhoráveis em razão das cláusulas restritivas estabelecidas no testamento, o credor poderá penhorar os frutos e rendimentos oriundos desses bens, conforme previsão do artigo 650 do Código de Processo Civil:
“Art. 650, CPC: Podem ser penhorados, à falta de outros bens, os frutos e rendimentos dos bens inalienáveis, salvo se destinados à satisfação de prestação alimentícia.”
Assim, a penhora dos bens recebidos pelo herdeiro-devedor em razão da morte do autor da herança só será possível quando:
Na impossibilidade da penhora da legítima, o credor poderá requerer a penhora dos frutos e rendimentos oriundos dos bens deixados pelo testador, e que agora integram o patrimônio do herdeiro-devedor.
VI. Conclusão:
Pelo presente memorando, verifica-se que no Código Civil de 1916, o estabelecimento de cláusulas restritivas sobre o patrimônio do autor da herança era considerado uma forma de blindagem sucessória patrimonial, especialmente porque os gravames recaiam, inclusive, sobre a legítima, sem a necessidade de qualquer justificativa.
No entanto, com a vigência do atual Código Civil, referidas cláusulas deixaram de ser consideradas formas para proteção ao patrimônio que será deixado aos herdeiros, especialmente porque a imposição das restrições deve ser suficientemente clara para que não seja impugnada por terceiros interessados – que podem ser, inclusive, os próprios credores do herdeiro, que arguindo a existência de fraude na imposição das restrições, podem conseguir que as cláusulas sejam invalidadas.
Portanto, conclui-se que não há qualquer segurança jurídica – no que diz respeito à blindagem patrimonial – ao herdeiro que recebe os bens clausulados, porquanto na ausência de justa causa as restrições não poderão recair sobre a legítima. Por outro lado, se existente a justa causa, mas considerada superficial pelo magistrado no julgamento da impugnação proposta pelo terceiro interessado, poderá ter sua eficácia e validade revogada.
Camilla Thais Correa Moriki
camilla@fortes.adv.br
Cylmar Pitelli Teixeira Fortes
cylmar@fortes.adv.br
[1] In Silvio Salvo Venosa, Direito Civil, Direito das Sucessões, p. 6, 12ª edição, Editora Atlas, São Paulo, 2012
[2] “Parágrafo 2º, artigo 1.857, CC: São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas tenha se limitado.”
[3] Art. 1.911, CC: A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica em impenhorabilidade e incomunicabilidade.
Parágrafo único. No caso de desapropriação de bens clausulados, ou de sua alienação, por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro, mediante autorização judicial, o produto da venda converter-se-á em outros bens, sobre os quais incidirão as restrições apostas aos primeiros.
[4] Súmula 49, STF. A cláusula de inalienabilidade inclui a incomunicabilidade dos bens.
[5] Bens sujeitos a colação refere-se a adiantamento da herança em vida por doação
[6] apud Silvio Salva Venosa in Direito das Sucessões, p. 165/166, Volume 7, Editora Atlas, 12ª edição, São Paulo, 2012
[7] Artigo 2.042 dos Atos das Disposições Finais e Transitórias do Código Civil
[8] Fonte: http://www.irib.org.br/html/noticias/noticia-detalhe.php?not=760, em 05/08/2015
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