Matriz e Filial: STJ reafirma a unicidade da pessoa jurídica

17/11/2025

Por Beatriz de Abreu Caldeira

Em setembro de 2025, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o Agravo em Recurso Especial nº 2.605.869/AM, de relatoria do Ministro Gurgel de Faria, envolvendo a Americanas S.A. – em recuperação judicial – e o Estado do Amazonas.

A controvérsia do caso em apreço girou em torno da extensão dos efeitos de uma decisão judicial obtida pela matriz às suas filiais, as quais não haviam figurado como partes na ação inicial.

Na origem, a Americanas impetrou mandado de segurança questionando a cobrança do Diferencial de Alíquota (DIFAL) do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes.

O juízo de primeira instância concedeu a segurança, reconhecendo a impossibilidade de exigência do imposto. A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM).

O ponto controverso surgiu quando, após o trânsito em julgado, a Americanas pleiteou a extensão dos efeitos da decisão judicial às filiais localizadas no mesmo Estado: o Estado do Amazonas se opôs, argumentando que cada filial teria personalidade jurídica própria e, portanto, deveria ajuizar ação autônoma para afastar a cobrança do tributo.

Esse argumento foi acolhido pelo próprio TJAM, sustentando que “para fins tributários, matriz e filiais possuem personalidades distintas” — entendimento tradicionalmente invocado por Fazendas Estaduais, especialmente em matéria de ICMS, devido à inscrição estadual individualizada de cada estabelecimento.

Inconformada, a Americanas interpôs recurso especial ao STJ, defendendo que matriz e filiais integram uma única pessoa jurídica, e que, portanto, a decisão judicial favorável à sociedade deveria irradiar efeitos sobre todas as suas unidades, mesmo aquelas não nomeadas na ação.

O STJ reformou o acórdão proferido pelo TJAM e manteve a linha de precedentes reafirmando a inexistência de autonomia jurídica entre matriz e filiais, de modo a reconhecer que os efeitos da decisão se estendem à totalidade da pessoa jurídica.

No voto condutor, o Ministro Gurgel de Faria resgatou o entendimento já consolidado da Corte, especialmente no REsp 1.355.812/RS, segundo o qual:

“a filial é uma espécie de estabelecimento empresarial, fazendo parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica (…), consiste, conforme doutrina majoritária, em uma universalidade de fato, não ostentando personalidade jurídica própria, não sendo sujeito de direitos, tampouco uma pessoa distinta da sociedade empresária.”

Isto é, a filial constitui apenas uma unidade operacional, um estabelecimento secundário da mesma sociedade empresária, instituído para viabilizar e ampliar o exercício da atividade econômica em diferentes localidades — sem que disso decorra o surgimento de nova pessoa jurídica. Trata-se, portanto, de um desdobramento da própria empresa, que compartilha os mesmos sócios, o mesmo contrato social e a mesma denominação da matriz.

Embora cada filial possua CNPJ próprio, essa inscrição tem função meramente administrativa e fiscalizatória, destinada a facilitar a arrecadação de tributos como ICMS e IPI. Tal individualização não confere personalidade jurídica, nem separa patrimônio ou responsabilidades entre matriz e filiais, como bem observou o Ministro relator:

“o fato de as filiais possuírem CNPJ próprio confere a elas somente autonomia administrativa e operacional para fins fiscalizatórios, não abarcando a autonomia jurídica, já que existe a relação de dependência entre o CNPJ das filiais e o da matriz.”

Negar a extensão dos efeitos da decisão, segundo o STJ, significaria fragmentar artificialmente a personalidade jurídica da empresa, o que seria incompatível com o sistema do Código Civil e com a própria lógica da tributação.

O entendimento do STJ se ancora em sólida base conceitual do Direito Empresarial e Civil. Nos termos do art. 1.142 do Código Civil, a filial é um estabelecimento empresarial, isto é, “o conjunto de bens organizado para o exercício da empresa”. Não se trata de uma pessoa jurídica distinta, mas de uma parcela organizada do patrimônio da sociedade.

A partir da leitura conjugada dos arts. 44 e 985 do mesmo dispositivo, que disciplinam as espécies de pessoas jurídicas e estabelecem que a personalidade jurídica se adquire com o registro do contrato social, conclui-se que a única titular de direitos e obrigações é a própria sociedade empresária, e não cada um de seus estabelecimentos.

A reafirmação dessa tese pelo STJ produz efeitos relevantes na prática empresarial e tributária:

(a) Unidade patrimonial e processual. Matriz e filiais respondem conjuntamente por obrigações tributárias e civis.
O patrimônio é uno, e a matriz pode litigar em nome das filiais — e vice-versa —, sem que isso configure ilegitimidade processual.

(b) Extensão de decisões judiciais. Uma decisão favorável obtida por uma unidade se estende automaticamente a todas as demais, simplificando o contencioso e reduzindo custos processuais.

(c) Limites da autonomia administrativa. As filiais podem ter gestão descentralizada e contabilidade própria, mas não possuem capacidade jurídica autônoma para adquirir direitos ou contrair obrigações em nome próprio. Todo ato jurídico — inclusive os de natureza tributária — reverte à sociedade empresária como um todo.

Em síntese, o STJ reforçou o conceito de universalidade de fato, expressão doutrinária que designa o conjunto de bens e atividades reunidos para determinado fim econômico, sem individualidade jurídica própria, reforçando a coerência do sistema jurídico e conferindo maior segurança e previsibilidade às relações empresariais.

A reafirmação da unicidade da pessoa jurídica produz efeitos significativos no mercado de crédito estruturado, especialmente nos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) e nas demais operações que envolvem securitização ou cessão de crédito, em que a distinção entre matriz e filiais frequentemente gera dúvidas operacionais, tributárias e contratuais.

Em primeiro lugar, a decisão reforça que, nos FIDCs, o devedor dos créditos cedidos é sempre a sociedade empresária como um todo, independentemente do estabelecimento que tenha emitido a nota fiscal, duplicata ou documento gerador do crédito. Filiais não possuem patrimônio próprio; logo, os direitos creditórios integram o patrimônio uno da empresa cedente, o que simplifica a análise de lastro, a estruturação do fundo e a verificação de concentração de risco.

Adicionalmente, na fase de cobrança e recuperação de créditos, o entendimento elimina discussões sobre eventual ilegitimidade passiva quando o título é originado por filial distinta daquela indicada na execução. A sociedade empresária pode ser cobrada por qualquer de suas unidades, e o FIDC pode direcionar a cobrança à matriz ou a qualquer filial, conforme maior efetividade operacional, sem risco de nulidade ou improcedência por erro de polo passivo.

No âmbito da cessão de crédito, a unicidade igualmente facilita o cumprimento do art. 290 do Código Civil, pois a notificação do devedor pode ser feita à sociedade empresária em qualquer de seus estabelecimentos — não é necessário notificar cada filial separadamente. Isso reduz custos, prazos e riscos formais em operações envolvendo grandes volumes de contratos cedidos.

Em operações com empresas em recuperação judicial, o entendimento em apreço também é relevante: se a matriz está em recuperação, todas as filiais estão submetidas ao mesmo regime — e vice-versa. Assim, para FIDCs que possuem créditos cedidos por empresas recuperandas, não há necessidade de habilitação individualizada por estabelecimento, pois o passivo é único e afeta a totalidade da pessoa jurídica.

Por fim, o precedente reforça que a prática de certos agentes de tratar filiais como “devedores distintos” para fins de concentração ou risco jurídico não encontra base legal. Para securitização, isso evita estruturas equivocadas que fragmentem artificialmente o risco do devedor, garantindo maior segurança jurídica, previsibilidade e alinhamento com a doutrina empresarial consolidada.

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