STJ admite acesso a bens digitais em inventário e cria a figura do inventariante digital

28/10/2025

Por Bianca Moreira da Silva

Em setembro de 2025, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, no Recurso Especial nº 2.124.424/SP, uma questão inédita no país, ao admitir que os bens digitais do falecido integrem o acervo sucessório e possam ser objeto de partilha no inventário. O julgamento, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, representa um marco no direito sucessório, ao enfrentar matéria ainda sem legislação específica e harmonizar o direito dos herdeiros ao patrimônio digital, com a proteção da intimidade e dos direitos da personalidade do falecido.

O caso tem origem em processo de inventário no qual a herdeira pretende obter acesso a dispositivos eletrônicos – IPads pertencentes à autora da herança e ao marido, também falecido –, alegando não possuir pleno conhecimento da totalidade dos bens deixados, diante do vultoso patrimônio da família, e que informações relevantes sobre o patrimônio poderiam estar armazenadas nos referidos aparelhos.

O pedido de expedição de ofício à Apple foi indeferido pelo juízo de primeira instância e a decisão mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o fundamento de que o exame da matéria demandaria dilação probatória, a ser discutida em ação autônoma. O STJ, entretanto, reformou a decisão e reconheceu que o acesso aos bens digitais integra o próprio processo de inventário, devendo ocorrer por meio de incidente processual específico.

No voto condutor, a Ministra Nancy Andrighi destacou que a era digital transformou profundamente as relações patrimoniais, impondo uma reinterpretação dos institutos clássicos do direito sucessório e reconhecimento da existência de bens digitais. Para ela:

“A era digital provocou no comportamento social uma profunda modificação no modo de aquisição, armazenamento, posse e uso de bens; como consequência, altera-se também o modo de os identificar e partilhar. São os chamados bens digitais, que merecem ser reconhecidos juridicamente.”

A relatora acrescenta que o juiz deve adotar cautelas para conciliar o direito dos herdeiros à transmissão integral do patrimônio com a proteção da intimidade do falecido e de terceiros, motivo pelo qual o acesso não pode ser delegado diretamente às plataformas digitais, sob pena de violação de direitos da personalidade.

Os bens digitais compreendem ativos intangíveis armazenados em meios eletrônicos, dotados de valor econômico ou pessoal. Podem incluir, entre outros, royalties e receitas de canais digitais, milhas, criptomoedas, carteiras virtuais, arquivos e contratos eletrônicos, bem como domínios de internet e outros conteúdos de valor patrimonial. Já os bens de natureza pessoal – como mensagens privadas e registros íntimos – não são transmissíveis, por estarem ligados diretamente à personalidade do titular e à sua esfera de privacidade.

O STJ definiu que o acesso a tais bens deve ocorrer por meio de incidente processual de identificação, classificação e avaliação de bens digitais, a ser apensado ao inventário. De acordo com o acórdão, o incidente tem natureza de “dilatação procedimental”, destinada a ampliar os atos do processo principal para resolver questão acessória surgida no curso da demanda, sem paralisar o andamento do inventário quanto aos demais bens. A solução permite ao juiz identificar a existência, o conteúdo e a transmissibilidade dos bens digitais, assegurando simultaneamente a efetividade da partilha e a proteção aos direitos da personalidade.

Para viabilizar o acesso e preservar a confidencialidade das informações, o STJ criou a figura do inventariante digital – profissional com conhecimento especializado, designado pelo juiz para acessar, identificar e classificar os bens digitais. Essa atuação é distinta da do inventariante tradicional: o inventariante digital não representa o espólio, mas atua como auxiliar do juízo, com o dever de sigilo e responsabilidade civil e criminal por eventual violação de dados. A medida busca equilibrar o direito sucessório com a proteção constitucional da intimidade e da vida privada, prevista no art. 5º, X, da Constituição Federal.

A criação dessa figura visa justamente preservar a confidencialidade e, ao mesmo tempo, garantir que todos os bens patrimoniais, analógicos e digitais sejam identificados e partilhados. Conforme consignado no acórdão:

“Diante da existência de bens digitais integrando o monte partível, é dever do juiz se cercar de todos os cuidados e garantias para compatibilizar, de um lado, o direito dos herdeiros à transmissão de TODOS os bens do falecido, em respeito à determinação constitucional prevista no art. 5º, XXX, da CF; de outro, o respeito aos direitos de personalidade, especialmente a intimidade, do falecido e de terceiros.”

O precedente evidencia a importância do planejamento sucessório também em relação aos bens digitais, permitindo que o titular, em vida, defina sobre o destino de seus bens virtuais e indique pessoa de confiança para administrar esses bens após o falecimento. Em um cenário de crescente evolução tecnológica, torna-se essencial que testamentos e outros instrumentos que versem sobre patrimônio contenham cláusulas específicas sobre o acesso, gestão e partilha desses ativos.

A decisão da 3ª Turma do STJ constitui precedente inovador e de grande relevância prática, especialmente por enfrentar tema ainda sem legislação específica no ordenamento jurídico brasileiro. Ao definir diretrizes para o tratamento dos bens digitais, o STJ preenche um vácuo normativo existente, oferecendo diretrizes práticas para a gestão e partilha dos bens digitais, e compatibilizando as transformações tecnológicas com o direito sucessório, sem descuidar da proteção à intimidade e aos direitos da personalidade.

O acórdão e o voto podem ser acessados clicando aqui.

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