13/06/2025
Inicialmente, é importante destacar que a Lei Federal nº 14.905/2024, publicada em 1º de julho de 2024, alterou o Código Civil (Lei nº 10.406/2002), nele promovendo mudanças significativas, nas quais se incluem:
• Correção Monetária: na ausência de previsão contratual, a correção monetária deve ser aplicada com base no IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), nos termos do parágrafo único do artigo 389 do Código Civil;
• Juros Moratórios: os juros moratórios passaram a ser calculados com base na taxa Selic, deduzido o índice de atualização monetária (IPCA), nos termos do artigo 406 do Código Civil;
• Flexibilização da Lei da Usura: a Lei da Usura (Decreto nº 22.626/1933) não se aplica mais a determinadas operações, incluindo aquelas contratadas entre pessoas jurídicas e representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários.
Especificamente neste artigo, trataremos do impacto dessas alterações nas operações que envolvem Cédula de Produto Rural Financeira (CPR-F).
Regulada pela Lei Federal nº 8.929/1994, com as alterações introduzidas pela Lei Federal nº 13.986/2020 (Lei do Agro), a CPR-F pode ser definida da seguinte forma: um título de crédito emitido por produtores rurais ou suas associações e que representa uma obrigação financeira vinculada à atividade agropecuária.
Em outras palavras, a CPR-F é uma modalidade específica de Cédula de Produto Rural (CPR), emitida para a venda antecipada de produtos agrícolas financiados com pagamento por meio de recursos financeiros.
A CPR foi criada em 1994, com foco na entrega futura de produtos agropecuários (CPR física). Com a evolução do agronegócio brasileiro e a necessidade de instrumentos financeiros mais sofisticados, foi criada a modalidade financeira, inicialmente usada de forma restrita.
A Lei do Agro (13.986/2020), entretanto, consolidou a CPR-F, conferindo-lhe plena segurança jurídica e atratividade para investidores, inclusive internacionais.
Diferentemente da CPR física, que envolve a entrega futura de produtos, a CPR-F tem como objeto o pagamento em dinheiro, permitindo ao emissor captar recursos com base em sua expectativa de produção ou atividade futura.
A CPR-F pode conter cláusula de correção pela variação de produtos, índices ou moedas, e admite a pactuação de juros, sendo amplamente utilizada como instrumento de financiamento no setor do agronegócio, inclusive com possibilidade de emissão escritural e negociação em mercados organizados.
Desempenha um papel central no financiamento do setor agrícola brasileiro, oferecendo aos produtores a oportunidade de antecipar recursos com base na futura entrega de produtos. No entanto, quando emitida diretamente a instituições não financeiras, a CPR-F, historicamente, foi alvo de controvérsias jurídicas, especialmente em relação à cobrança de juros, resultando em questionamentos frequentes por parte dos devedores.
Esses questionamentos se fundamentavam na aplicação de normas como a Lei da Usura e precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que limitavam a taxa de juros e vedavam a capitalização mensal, gerando um ambiente de insegurança para os credores.
Com a recente promulgação da Lei Federal nº 14.905, de 28 de junho de 2024, o cenário jurídico em torno da CPR-F sofreu alterações substanciais. A nova legislação padronizou a aplicação de correção monetária pelo IPCA e estabeleceu que, em operações entre pessoas jurídicas ou representadas por títulos de crédito e valores mobiliários, as limitações impostas pela Lei da Usura não mais se aplicam.
Dessa forma, a cobrança de juros e a capitalização mensal, anteriormente passíveis de contestação no judiciário, agora são permitidas de maneira clara e objetiva, eliminando o risco de questionamentos judiciais sobre o tema.
Ao afastar a aplicação da Lei da Usura e permitir a capitalização mensal de juros, a nova legislação fortalece o mercado de crédito rural, garantindo maior flexibilidade e segurança tanto para credores quanto para devedores. Essa análise é fundamentada em precedentes jurisprudenciais anteriores à nova lei, ilustrando como a norma anterior gerava questionamentos, e como a recente alteração legal solidifica o entendimento sobre a legalidade da cobrança dos juros contratualmente ajustados entre os envolvidos na operação.
Com efeito, até a promulgação da Lei Federal nº 14.905/2024, o cenário jurídico das operações que envolvem CPR-F era apoiado por precedentes, como na Apelação Cível nº 1007998-35.2015.8.26.0597, em que o Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou as limitações impostas pela Lei da Usura (Decreto nº 22.626/1933), que restringe a taxa de juros a 2% (dois por cento) ao mês e proíbe a capitalização mensal dos juros:
“EMBARGOS À EXECUÇAO. CÉDULA DE PRODUTO RURAL FINANCEIRA. Sentença de improcedência. Irresignação dos embargantes. Cabimento em parte. Prejudicado o pedido de antecipação dos efeitos da tutela recursal em virtude do exame do recurso. Cédula de Produto Rural Financeira é título de crédito. Art.4º-A, §1º, da Lei 8.929/94. Cooperativa exercendo atividade típica das instituições financeiras. Hipótese de aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Súmula 297 do STJ. Precedentes. Alterações do preço de venda, das condições de produção e dos custos da produção que consistem em risco interno do negócio. Ilegalidade do percentual dos juros moratórios praticados. Inaplicável à CPR a limitação de juros moratórios em 1% ao ano, prevista para a CCR. Info 603 do E. STJ. Juros moratórios de 3% a.m., de forma capitalizada, reduzidos para 1% ao mês, sem capitalização. Multa moratória de 10%, durante o período de inadimplência, que é abusiva, conforme Lei nº 9.298/96. Redução para o percentual de 2%, de acordo com a jurisprudência do C. STJ. Manutenção da TJLP como índice de correção monetária. Súmula 288 do STJ. Sucumbência recíproca caracterizada. Recurso provido em parte.”
(TJSP; Apelação Cível nº 1007998-35.2015.8.26.0597; Relator: Walter Barone; Órgão Julgador: 24ª Câmara de Direito Privado; Data da Decisão: 28/03/2018; Data de Publicação: 28/03/2018; grifo nosso)
Essa prática gerava insegurança para os credores, que frequentemente enfrentavam contestações dos devedores quanto à validade dos encargos pactuados.
O entendimento jurisprudencial sobre a aplicação da Lei da Usura às CPRs emitidas para instituições não financeiras também – e principalmente – encontrava respaldo em decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, ao julgar o AREsp nº 1089245, assim se manifestou:
“Entrementes, cabe distinguir que as Cédulas de produto rural financeira – CPRF, as Cédulas rurais pignoratícias – CRP, as Cédulas rurais hipotecárias – CRH, são de natureza rural, e os Contratos de custódia de cheques – CCE e os Contratos de Empréstimo Pessoal – EP, são de natureza não rural, sendo que somente nestes dois últimos casos deve se verificar a existência de abusividade na aplicação dos juros remuneratórios capaz de colocar o consumidor em desvantagem exagerada (art. 51, § 1°, do Código de Defesa do Consumidor), situação em que é admitida a revisão das taxas de juros.
Quanto aos primeiros, a jurisprudência tem compreendido que, embora a Lei n° 4.595/64 não limite os juros bancários a 12% ao ano, os títulos de crédito rural, comercial e industrial acham-se submetidas a regramento próprio (Lei n° 6.840/80 e Decreto -Lei 413/69), que conferem ao Conselho Monetário Nacional o dever de fixar os juros a serem praticados. Tendo em vista a omissão desse órgão governamental, incide a limitação de 12% ao ano, prevista no Decreto n. 22.626/33 (Lei da Usura).
Inclusive, havendo desconformidade entre as cláusulas da cédula com o objetivo social da Lei 8.929/1994, a cobrança da dívida, em vista da inadimplência dos devedores, deve ser limitada pela aplicação subsidiária do Decreto Lei 167/67.
Assim, aplicam-se à cédula de produto rural a limitação de juros moratórios a 1% ao ano e a limitação de juros remuneratórios a 12% ao ano, desde que o credor não esteja autorizado pelo Conselho Monetário Nacional para cobrar juro em percentual maior.”
(STJ; AgInt no AREsp nº 1089245; Rel. Min. Marco Buzzi; Julgado monocraticamente em 28/08/2023; grifo nosso)
Da mesma maneira, ao julgar o Recurso Especial nº 1.435.979, na data de 30/03/2017, o STJ entendeu que, em se tratando de CPR, os limites da Lei da Usura se aplicavam integralmente. Veja-se, a propósito, um excerto do voto do Relator do referido recurso, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino:
“Na esteira desse entendimento, a única limitação passível de ser imposta aos juros de mora, sem descaracterizar esse título, é o limite estabelecido na Lei da Usura, ‘o dobro da taxa legal’ (cf. art. 1º do Decreto 22.626/1933)” (grifo nosso)
Em sentido oposto ao entendimento consolidado pelo STJ, a doutrina sempre sustentou posicionamento diverso:
“A Lei 8.929/94 estruturou formalmente a CPR, mas, diferentemente de outras leis que criaram outros títulos de crédito, ela foi contida dizendo apenas o essencial sem a especificidade de uma cédula de crédito rural ou mesmo de um cheque, por exemplo.
Essa dicção restritiva do legislador implica na possibilidade do emitente e do credor poderem estabelecer obrigações recíprocas livremente desde que pertinentes ao negócio acordado. Como a obrigação do emitente é o de entregar produto rural específico pode ficar estabelecido que tipo de produto, como, onde e de que forma que ele será entregue. De outro lado, como essa entrega envolve uma contraprestação anterior, ela pode se constituir na mais variada forma possível e assim envolver a compra pura e simples de um produto rural, a compra de insumos ou implementos agrícolas ou mesmo, como venho sustentando, o pagamento de uma dívida, a compra de um carro ou qualquer outro negócio jurídico lícito, inclusive uma doação.
A ausência de vinculação legal obrigatória, […], faz surgir o princípio da autonomia de vontade permitindo que as partes vinculadas à CPR possam completar da forma mais ampla possível aquilo que a lei não exigiu. Ao contrário do que tem sido afirmado, isso não retira a natureza jurídica de caracterizar a CPR como título de crédito. Essa possibilidade apenas fez surgir um título de crédito onde é possível a acomodação das vontades privadas das partes. É um título diferente do modelo clássico.
A autonomia de vontade presente na CPR permite, por exemplo, que o emitente e o credor estabeleçam livremente os encargos com taxa de juros, despesas de aval bancário, despesas cartorárias, de vistorias, de fiscalização, de transporte e de prêmio de seguro, resultando que a assunção do compromisso de entregar o produto já embuta todos estes encargos.”
(WELLINGTON PACHECO BARROS, Estudos avançados sobre a Cédula de Produto Rural – CPR. Campo Grande: Contemplar, 2013, p. 40 s.; grifos nossos)
Com a promulgação da Lei Federal nº 14.905, em 28 de junho de 2024, essa divergência entre doutrina e jurisprudência, bem como a segurança jurídica das transações, mudou significativamente.
Isso porque a nova legislação expressamente afasta a aplicação da Lei da Usura em operações de crédito entre pessoas jurídicas, representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários, como é o caso da CPR-F. Tal fato elimina as limitações anteriormente impostas e garante às partes pactuar livremente a taxa de juros, respeitando apenas a correção monetária pelo IPCA.
A possibilidade de capitalização mensal dos juros, prática até então proibida nos termos da Lei da Usura, agora foi expressamente permitida pela nova legislação, desde que previamente ajustada entre as partes.
Um ponto relevantíssimo no contexto das CPRs é a atuação dos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) como beneficiários primários. Quando um FIDC figura como destinatário de uma CPR-F, a questão dos juros, em tese, não deveria ter sido objeto de questionamento, mesmo antes da Lei Federal nº 14.905/2024. Isso porque os FIDCs, por sua própria natureza, operam no mercado financeiro e o STJ já equiparou essas entidades às de instituições financeiras, o que lhes confere a prerrogativa de pactuar juros sem as limitações impostas pela Lei da Usura.
Ainda assim, em operações realizadas por FIDCs, esses questionamentos continuavam a ser levantados, gerando uma zona de insegurança para essas operações. Com a nova lei, essa discussão finalmente foi encerrada, estabelecendo de forma inequívoca que as limitações impostas pela Lei da Usura não se aplicam a essas operações, garantindo maior transparência e previsibilidade nas relações comerciais entre credores e devedores.
Essas mudanças trouxeram uma nova era de segurança jurídica para as operações de CPR-F, especialmente no que diz respeito às instituições não financeiras e FIDCs. Agora, os credores podem pactuar condições de juros sem temer contestações judiciais frequentes por parte dos devedores.
A flexibilidade na cobrança de encargos financeiros é essencial para a manutenção e expansão do crédito rural, proporcionando ao setor agrícola mais acesso a recursos com condições ajustadas às realidades de mercado.
A Lei Federal nº 14.905/2024 promoveu, assim, um avanço significativo na regulamentação do crédito rural, eliminando a insegurança jurídica gerada por interpretações divergentes da legislação anterior.
A capitalização dos juros, que anteriormente era uma fonte de grande controvérsia, agora pode ser aplicada de maneira clara e objetiva, fortalecendo o ambiente de negócios para credores e devedores. Isso traz vantagens especialmente para os credores, que podem estruturar suas operações financeiras de forma mais previsível, sabendo que os acordos pactuados não serão posteriormente contestados nos tribunais com base em limitações anacrônicas. Para os devedores, embora a possibilidade de capitalização e de taxas de juros mais elevadas talvez pareça inicialmente desfavorável, a nova legislação também oferece maior clareza e transparência nas condições de crédito, permitindo que ambos os lados da relação comercial ajustem melhor suas expectativas.
Em síntese, a promulgação da Lei Federal nº 14.905/2024 representa um marco na regulamentação do crédito rural, ao harmonizar a aplicação de correção monetária e juros, afastando as limitações da Lei da Usura em operações entre pessoas jurídicas. A flexibilização das condições de crédito, especialmente no que diz respeito à CPR-F, incentiva a expansão do setor agrícola e fortalece o ambiente de negócios para todos os envolvidos.
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