O “falso coletivo” e o controle judicial dos reajustes abusivos dos planos de saúde

19/05/2025

Por Beatriz Martins Rufino

Na última década, os planos de saúde tornaram-se um dos principais focos de judicialização no Brasil, sobretudo em razão dos aumentos expressivos e, muitas vezes, imotivados nas mensalidades. Nesse cenário, o controle judicial tornou-se ferramenta indispensável para assegurar o equilíbrio contratual e proteger o direito à saúde.

1. Reajustes autorizados e a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)

A ANS, conforme a Lei nº 9.656/98, regula os planos individuais e familiares, fixando anualmente os percentuais máximos de reajuste. Já os planos coletivos — empresariais ou por adesão — não estão sujeitos a esse controle prévio.

Nos termos da Resolução Normativa nº 565/2022 da ANS, admite-se a aplicação de reajustes por sinistralidade nos planos coletivos, desde que fundamentados na necessidade de recomposição atuarial — ou seja, no restabelecimento do equilíbrio financeiro do contrato, com base na relação entre as receitas obtidas pelas mensalidades e as despesas assistenciais efetivamente incorridas — e precedidos de comprovação documental detalhada (memória de cálculo, metodologia adotada, projeções atuariais compreensíveis, entre outros), com apresentação prévia à pessoa jurídica contratante, no mínimo trinta dias antes da aplicação do reajuste.

Contudo, a prática revela que tais exigências frequentemente são ignoradas. Os reajustes são aplicados sem justificativas técnicas adequadas, abrindo margem para as operadoras realizarem aumentos excessivos e pouco transparentes, o que configura verdadeiro abuso.

Nesse contexto, em abril/2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que o reajuste por sinistralidade somente poderia ser aplicado “se e quando demonstrado, a partir de extrato pormenorizado, o incremento na proporção entre as despesas assistenciais e as receitas diretas do plano” (REsp 2.065.976/SP, rel. Min. Nancy Andrighi).

Esse entendimento é igualmente adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP):

DIREITO CIVIL. APELAÇÃO. REVISÃO CONTRATUAL. RECURSO IMPROVIDO. I. Caso em Exame Apelação interposta contra sentença que julgou procedente a ação de revisão contratual c.c. restituição de valores, declarando abusivos os reajustes que ultrapassaram os índices da ANS para planos individuais e por mudança de faixa etária, condenando a ré à devolução da diferença paga. II. Questão em Discussão A questão em discussão consiste em determinar a legalidade dos reajustes aplicados pela ré, considerando a alegação de que o seguro é empresarial e não se aplicam os índices dos planos individuais. III. Razões de Decidir A majoração por sinistralidade deve ser clara e justificada, sob pena de ser considerada abusiva, conforme art. 51, IV, do CDC. A ausência de comprovação técnica dos reajustes justifica a aplicação dos índices da ANS, mesmo para planos empresariais, na falta de justificativa adequada. IV. Dispositivo e Tese Tese de julgamento: 1. Reajustes por sinistralidade devem ser claros e justificados. 2. Aplicação dos índices da ANS na ausência de justificativa técnica para planos empresariais. Recurso improvido.[1]

Trata-se de um reforço ao princípio da boa-fé objetiva e ao dever de informação, previstos no Código de Defesa do Consumidor (arts. 6º, III, e 31), bem como de aplicação do art. 373, II, do CPC, que atribui à operadora o ônus de provar a necessidade do aumento.

2. Limites impostos pelos tribunais e devolução de valores

Nesse cenário, tanto o STJ quanto o TJSP têm desempenhado papel proeminente no controle dos reajustes abusivos, reiteradamente reconhecendo a abusividade de reajustes não demonstrados ou aplicados com base em cláusulas genéricas, especialmente quando os contratos coletivos beneficiam pequenos grupos familiares.

Nesses casos, tem prevalecido o reconhecimento do chamado “falso coletivo” — contratos formalmente empresariais, mas que, na prática, beneficiam apenas membros de uma mesma família. Com base no princípio da primazia da realidade, os tribunais têm equiparado esses planos aos individuais ou familiares, afastando os reajustes aplicados e determinando sua substituição pelos índices autorizados pela ANS, além de determinar a restituição dos valores pagos a maior.

Dois precedentes ilustram esse posicionamento:

APELAÇÃO. DIREITO CIVIL. DIREITO DO CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. REAJUSTE ANUAL DE CONTRATO COLETIVO EMPRESARIAL COM 02 BENEFICIÁRIOS. “FALSO COLETIVO”. MAJORAÇÃO BASEADA EM PERCENTUAL DE REAJUSTE ÚNICO (SINISTRALIDADE E VCMH). IMPOSSIBILIDADE. EQUIPARAÇÃO COM CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE INDIVIDUAL/FAMILIAR. APLICAÇÃO DOS INDÍCES DE REAJUSTE ANUAIS AUTORIZADOS PELA ANS. 1. O contrato firmado pelas partes, na modalidade coletiva empresarial, desde à época em foi contratado (10/08/2022), tem como beneficiários apenas duas pessoas. É certo que o aumento das mensalidades dos planos de saúde e seguros saúde coletivos empresariais, como no caso, independe de autorização da ANS e não se submetem aos percentuais por ela divulgados e autorizados, podendo seguir o aumento da sinistralidade verificado dentro do grupo de beneficiários. No caso em tela, contudo, como já exposto, os elementos de convicção existentes apontam no sentido de que o contrato coletivo de plano empresarial celebrado entre as partes trata-se, na realidade, de um “falso coletivo”, uma vez que foi celebrado em benefício de apenas duas pessoas, todos integrantes da mesma família (esposo e esposa), devendo assim receber o tratamento análogo ao dos planos de saúde individuais (STJ REsp 1.701.600/SP em 06/03/2018). Aplicação dos índices de reajustes anuais autorizados pela ANS para os planos individuais/familiares. Como consequência, deve ser considerada nula a cláusula contratual que autoriza o reajuste anual por sinistralidade e VCMH, prevista no contrato, bem como nulo o reajuste anual de 23%, aplicado pela ré na mensalidade, em julho de 2023, devendo ser substituído pelo índice de reajuste autorizado pela ANS para os planos e seguros saúde individuais e familiares. 2. Sentença mantida. Recurso improvido.[2]

 

Plano de saúde. Contrato coletivo que beneficia apenas pequeno grupo familiar. Falsa coletivização. Reajustes por variação de custos e aumento de sinistralidade. Inaplicabilidade. Incidência do regime jurídico dos planos de saúde individuais e familiares. Substituição pelos índices autorizados pela ANS. Precedentes. Restituição da diferença a maior devida, observada a prescrição trienal. Rescisão unilateral imotivada do contrato. Impossibilidade. Sentença mantida. Recurso improvido.[3]

Além disso, decisões mais recentes têm afastado o argumento de “risco de ruína” do setor suplementar de saúde, frente aos lucros bilionários das operadoras. No julgamento da Apelação Cível nº 1030153-45.2023.8.26.0405, o TJSP destacou que “não convence, minimamente, a tese de risco de ruína, à vista do lucro líquido de R$ 5,6 bilhões das operadoras nos dois primeiros trimestres de 2024”[4].

3. Conclusão

Embora o modelo coletivo seja predominante no mercado, o Judiciário tem reiteradamente afirmado que a coletivização formal não pode servir de escudo para práticas abusivas. O recente posicionamento do STJ, aliado à consolidada jurisprudência do TJSP, evidencia a responsabilização das operadoras pela falta de transparência e a imposição do dever de justificar tecnicamente os reajustes aplicados.

O controle judicial dos reajustes tornou-se, assim, instrumento essencial ao equilíbrio dessas relações contratuais e cumpre, nesse contexto, um papel regulador complementar.

 

[1] TJSP; Apelação Cível 1000863-32.2024.8.26.0281; Relator: James Siano; Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itatiba – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 26/02/2025; Data de Registro: 26/02/2025.

[2] TJSP; Apelação Cível 1030098-35.2023.8.26.0554; Relatora: Léa Duarte; Órgão Julgador: Núcleo de Justiça 4.0 em Segundo Grau Turma IV (Direito Privado 1); Foro de Santo André – 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 16/08/2024; Data de Registro: 16/08/2024.

[3] TJSP; Apelação Cível 1017033-04.2022.8.26.0361; Relator: Augusto Rezende; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Data da Decisão: 21/06/2023; Data de Publicação: 21/06/2023.

[4] TJSP; Apelação Cível 1030153-45.2023.8.26.0405; Relator: Wilson Lisboa Ribeiro; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Osasco – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 18/12/2024; Data de Registro: 18/12/2024.

Compartilhe

Vistos, etc.

Newsletter do
Teixeira Fortes Advogados

Vistos, etc.

O boletim Vistos, etc. publica os artigos práticos escritos pelos advogados do Teixeira Fortes em suas áreas de atuação. Se desejar recebê-lo, por favor cadastre-se aqui.