STJ nega permanência de viúva no imóvel deixado pelo marido

12/11/2024

Por Bianca Moreira da Silva

Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça negou a uma viúva o direito de permanecer no imóvel deixado por seu marido, sob o fundamento de que ela possuiria recursos financeiros suficientes para assegurar a sua moradia e subsistência de forma digna. Com isso, o imóvel deverá ser destinado aos filhos do falecido.

Essa decisão representa uma significativa flexibilização do chamado Direito Real de Habitação, previsto no artigo 1.831 do Código Civil, que assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de permanecer residindo no imóvel familiar após o falecimento do companheiro:

“Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar.”

A intepretação tradicional do Direito Real de Habitação, consolidada pela doutrina e jurisprudência, é a de que o instituto reflete a concretização do direito constitucional à moradia e à dignidade da pessoa humana, e encontra respaldo nos princípios da solidariedade e da mútua assistência, ambos intimamente ligados à proteção da família.

Foi esse o entendimento aplicado de forma quase irrestrita ao longo dos anos, a fim de garantir ao cônjuge ou companheiro sobrevivente o direito de permanecer no imóvel que serviu de residência familiar.

No julgamento do caso em questão, entretanto, a Relatora Ministra Nancy Andrighi destacou que “o Direito das Famílias e Sucessões é ramo jurídico em constante evolução, visto que se desenvolve coetaneamente às transformações sociais e às inúmeras formas e possibilidades de exercer a afetividade.” E acrescentou ainda: “é necessário revisitar a compreensão sobre institutos que estão devidamente consolidados no ordenamento jurídico. É o que sucede, por exemplo, com o direito real de habitação, previsto no art. 1.831 do Código Civil, o qual deve ser interpretado e aplicado atendendo aos fins sociais a que se dirige e às exigências do bem comum”.

Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o Direito Real de Habitação não é absoluto e pode ser relativizado em situações excepcionais, a depender da análise do caso concreto, na qual se avaliará se a realidade econômica das partes envolvidas justifica a prevalência do direito dos herdeiros sobre o direito do cônjuge sobrevivente.

Veja-se a íntegra da ementa :

“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. DIREITO REAL DE HABITAÇÃO. DIREITO CONSTITUCIONAL À MORADIA. PRESERVAÇÃO DOS VÍNCULOS AFETIVOS. DIREITO VITALÍCIO E PERSONALÍSSIMO. REGRA. RELATIVIZAÇÃO E MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS.

1. Ação de inventário, ajuizada em 23/11/2005, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 21/11/2023 e concluso ao gabinete em 30/07/2024.

2. O propósito recursal consiste em decidir se o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do Código Civil pode ser mitigado quando houver um único imóvel a inventariar entre os descendentes e o convivente supérstite possuir recursos financeiros suficientes para assegurar a sua subsistência e moradia dignas.

3. Não há negativa de prestação jurisdicional quando o Tribunal de origem examina, de forma fundamentada, a questão submetida à apreciação judicial e na medida necessária para o deslinde da controvérsia, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte. Precedentes.

4. A normativa que confere o direito real de habitação ao convivente supérstite (art. 1.831 do Código Civil) possui caráter eminentemente protetivo, resguardando tanto o seu direito constitucional à moradia, quanto a preservação dos momentos de afetividade vivenciados no lar que compartilhava com a pessoa falecida. Isto é, ‘o objetivo da lei é permitir que o cônjuge/companheiro sobrevivente permaneça no mesmo imóvel familiar que residia ao tempo da abertura da sucessão como forma, não apenas de concretizar o direito constitucional à moradia, mas também por razões de ordem humanitária e social, já que não se pode negar a existência de vínculo afetivo e psicológico estabelecido pelos cônjuges/companheiros com o imóvel em que, no transcurso de sua convivência, constituíram não somente residência, mas um lar’ (REsp n. 1.582.178/RJ, Terceira Turma, Dje 14/9/2018).

5. Inobstante a sua notável envergadura no cenário nacional, o direito real de habitação não é absoluto e, em hipóteses específicas e excepcionais, quando não atender a finalidade social a que se propõe, poderá sofrer mitigação. Eventual relativização do direito real de habitação, somente excepcionalmente admitida, deverá ser examinada de modo casuístico, confrontando-se concretamente a necessidade de prevalência do direito dos herdeiros em face do direito do consorte.

6. O art. 1.831 do Código Civil deve ser interpretado da seguinte maneira: (I) como regra geral, preenchidos os requisitos legais, é assegurado ao cônjuge ou companheiro supérstite o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família; e (II) é possível relativizar o direito real de habitação em situações excepcionais, nas quais devidamente comprovado que a sua manutenção não apenas acarreta prejuízos insustentáveis aos herdeiros/proprietários do imóvel, mas também não se justifica em relação às qualidades e necessidades pessoais do convivente supérstite.

7. No recurso sob julgamento, o Tribunal de origem manteve o direito real de habitação da convivente supérstite sobre o único imóvel a inventariar em razão do falecimento do de cujus, sendo que ao longo do trâmite processual comprovou-se que: (I) a cônjuge sobrevivente recebe pensão vitalícia em montante elevado, possuindo recursos financeiros suficientes para assegurar sua subsistência e moradia dignas; e (II) os herdeiros são os nu-proprietários do imóvel, sendo que não recebem quaisquer outros valores a título de pensão e alugam outros bens para residirem com os seus descendentes (netos do falecido), os quais também poderiam ser abrigados no imóvel inventariando. Logo, na excepcional situação examinada, deve-se relativizar o direito real de habitação em favor dos herdeiros.

8. Recurso especial conhecido e provido para excepcionalmente afastar o direito real de habitação do cônjuge supérstite.”

No caso em questão, os filhos do falecido recorreram ao STJ argumentando que a viúva receberia pensão significativa deixada pelo falecido, que era Procurador Federal, e possuiria recursos financeiros suficientes para garantir sua sobrevivência e moradia de forma digna, enquanto eles (filhos do falecido) atualmente alugam imóveis para viver com seus próprios filhos, e poderiam morar no imóvel inventariado, que foi o único bem deixado pelo falecido.

A decisão, que certamente servirá de precedente para casos semelhantes, demonstra que o Superior Tribunal de Justiça está atento às novas realidades sociais e disposto a adaptar a interpretação das normas às transformações da sociedade.

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