Modernização das hipotecas no Brasil: perspectivas do Marco Legal das Garantias

24/10/2023

Por João Paulo Ribeiro Cucatto

No passado, a hipoteca desempenhou um papel crucial na garantia do desenvolvimento de diversos setores da economia brasileira, com destaque para o agronegócio, o sistema financeiro e a construção civil. No entanto, vários fatores tornaram a hipoteca menos relevante, até mesmo obsoleta, à medida que as garantias fiduciárias se desenvolveram. Uma das razões disso é a necessidade de que a execução de hipotecas, via de regra, seja realizada por meio do sistema judicial.

Essa característica da garantia hipotecária representa, pelo menos por enquanto, um obstáculo para a possibilidade de o credor iniciar a execução do seu crédito de forma extrajudicial, o que sujeita o já prejudicado titular do crédito a um procedimento judicial que não possui prazo para terminar e cujo resultado pode ser incerto.

O Projeto de Lei nº 4.188/2021 (Marco Legal das Garantias), que aguarda a sanção presidencial, propõe mudanças significativas no sistema de execução das garantias hipotecárias. Essas alterações modernizam a execução da hipoteca e permitem que o credor, como titular do direito real, obtenha maior celeridade e eficácia na recuperação do seu crédito.

Com as mudanças propostas, o procedimento de venda extrajudicial do imóvel hipotecado será o seguinte:

Procedimento de execução de garantia hipotecária conforme a proposta do Marco Legal das Garantias (PL 4.188/21)

Início do processo (Art. 9º, §1º): Com o vencimento da dívida, total ou parcial, o credor acionará o oficial do registro do imóvel, que deverá intimar pessoalmente o devedor para pagar a dívida em 15 dias. No que couber, o procedimento será o mesmo da alienação fiduciária (art. 26 da Lei 9.514/97).

Intimação do devedor: A intimação do devedor é regida pelo art. 26, §§3ºA-B, da Lei 9.514/97. O devedor será citado no endereço contratual, podendo ser citado em nome de terceiros em caso de suspeita de ocultação. Em condomínios edilícios ou imóvel com controle de acesso, será válida a intimação feita ao funcionário da portaria. Se em local ignorado, incerto ou inacessível, será por edital.

Purga da mora: Se o devedor pagar a dívida executada, o procedimento será o do art. 26, §§5º e 6º da Lei 9.514/97. Em três dias, o oficial deverá entregar ao credor a importância recebida, deduzidas as despesas de cobrança. Caso o valor executado seja de parte da dívida, o devedor continuará responsável pelas obrigações remanescentes. Se for o valor integral da dívida, liquidará o contrato.

Mora não purgada (art. 9º, §2º): Se o devedor não pagar a dívida executada, fica autorizado o procedimento de excussão por meio de leilão público. O credor deverá realizar a solicitação nos 15 dias posteriores ao prazo que o devedor tinha para pagar o débito.

Primeiro leilão (art. 9º, §§3º e 5º): O primeiro leilão deve ser iniciado em 60 dias a partir do requerimento do credor, e poderá ser realizado eletronicamente. O lance deverá ser igual ou superior ao valor estabelecido no contrato para a execução da dívida ou ao valor de avaliação feito por órgão público responsável pelo cálculo do ITBI, o que for maior.

Segundo leilão (art. 9º, §6º): Deverá ocorrer em até 15 dias após o fim do primeiro. O lance deverá ser igual ou superior ao valor integral da dívida garantida, acrescida das despesas acessórias em geral, inclusive de cobrança. A exclusivo critério do credor, poderá ser aceito o lance que corresponda pelo menos a 50% de avaliação do bem.

Remissão (art. 9º, §7º): A qualquer momento antes de o bem ser alienado em leilão, o credor poderá pagar a dívida integralmente e extinguir a execução. O valor recebido deverá ser transferido ao credor no prazo de 3 dias.

Saldo remanescente (art. 9º, §10): A proposta apenas exime o devedor de pagar saldo remanescente da dívida se for o caso de operação de financiamento para aquisição ou construção do imóvel residencial do devedor, exceto em se tratando de consórcio. Não há previsão de que o devedor seja eximido de responsabilidade pelo saldo devedor em operações que não estejam relacionadas ao sistema de habitação, que poderá ser objeto da ação judicial.

Venda por valor maior (art. 9º, §8º): O valor recebido, que exceder a totalidade da dívida, acrescida dos encargos, deverá ser transferida ao devedor no prazo de 15 dias a partir do pagamento do preço da arrematação.

Leilão sem venda (art. 9º, §9º, I e II): O credor poderá exercer os seguintes direitos caso o imóvel não seja alienado em leilão:

(i) a qualquer momento poderá adjudicar o imóvel pelo valor da dívida, atualizado, ocasião em que recolherá o ITBI

(ii) em 180 dias do último leilão, vender diretamente a terceiro, por valor igual ou superior ao da dívida. Nesse caso, o credor ficará investido de mandato para representar o devedor fiduciário e transmitir o imóvel ao terceiro;

(iii) se não se realizar o exercício de nenhum dos direitos acima, o credor manterá a hipoteca, e poderá adjudicar o imóvel a qualquer momento, realizar um novo leilão e até mesmo executar a dívida em processo judicial, sem renuncia da garantia.

Transmissão da propriedade e imissão na posse (art. 9º, §11 e 12): No caso de se verificar um lance vencedor, o processo será remetido para lavratura de ata notarial de arrematação, que será título para transferência da propriedade. A data desse título, para fins de direito, produzirá os mesmos efeitos que produz a data da consolidação da propriedade.

ITBI (art. 9º, §14): É necessário recolher o ITBI, ou o laudêmio, conforme o caso, nas situações de arrematação do imóvel, venda privada ou adjudicação. É desnecessário o recolhimento no curso da execução da garantia.

Exceção (art. 9º, §13º): As operações de financiamento de atividade agropecuária não estão sujeitas ao procedimento de execução extrajudicial de garantia hipotecária.

Condição (art. 9º, § 15): O contrato de garantia hipotecária deverá conter cláusula que reproduza o procedimento previsto na lei, com menção do art. 9º, §§1º a 10.

Mas será que isso é suficiente para que as garantias hipotecárias voltem a ocupar o mesmo espaço que ocuparam em um passado não tão distante, em comparação ao papel desempenhado atualmente pelas garantias fiduciárias? Essa decisão caberá ao credor, que deverá avaliar as circunstâncias do negócio e as características do seu devedor e da garantia.

É importante ter em mente que, em um cenário de recuperação judicial ou falência, a posição do credor fiduciário ainda é substancialmente mais vantajosa do que a do credor hipotecário.

É verdade que a garantia fiduciária também enfrenta debates árduos perante os Tribunais, como foi o caso da especificação das garantias, dos registros perante as autoridades registrais, da extensão da garantia fiduciária sobre créditos, a regularidade da intimação do devedor e muitos outros, prejudicando a segurança jurídica desse tipo de garantia. Apesar disso, a relevância de sua função no mercado de crédito é indiscutível.

Mas nem todos os devedores estarão sujeitos aos procedimentos coletivos de satisfação de credores, e, nesse sentido, essa circunstância poderá eventualmente ser irrelevante para a constituição e garantia do crédito. Em certas situações, poderá ser relevante considerar que a execução hipotecária não exige o recolhimento do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) para viabilizar a execução da garantia. Esse recolhimento só ocorrerá se o credor optar por adjudicar o imóvel.

Isso se dá porque a garantia fiduciária implica transferência da propriedade do bem, mantendo o devedor fiduciário com a posse direta e o credor com a posse indireta. Devido à consolidação, ocorre a transferência completa da propriedade para o patrimônio do credor fiduciário, o que resulta na incidência do ITBI.

No entanto, isso não acontece com a garantia hipotecária, uma vez que a hipoteca constitui um direito real que não implica na divisão da posse. Portanto, não haverá custos com a transferência da propriedade se o credor não optar por adjudicar o imóvel.

Outra circunstância que difere a garantia hipotecária é o fato de que o bem hipotecado pode ser penhorado para garantir a dívida de outro credor, o que não ocorre com a garantia fiduciária, que só permite a penhora dos direitos aquisitivos do fiduciante sobre o bem.

Ainda que o credor hipotecário, titular de direito real sobre a coisa hipotecada, tenha a preferência sobre o produto da sua eventual alienação, a própria ocorrência da venda pode ser prejudicial ao negócio que os contratantes estejam desenvolvendo.

De resto, não é demais lembrar que a Súmula 308/STJ considera que a hipoteca firmada entre uma construtora e o respectivo agente financeiro é ineficaz perante o adquirente de um imóvel. Isso, em muitos casos, poderá prejudicar a segurança da garantia.

No novo procedimento, em caso de insucesso nos leilões, o credor tem a opção de realizar a venda particular pelo valor de 50% do imóvel ou manter a hipoteca, sendo possível conduzir novos leilões e adjudicar a qualquer momento, e até mesmo executar o crédito pela via judicial e penhorar o bem. Sem dúvida, existem características significativas da execução extrajudicial da garantia hipotecária.

Por fim, é importante notar que o credor ainda mantém o direito de buscar uma execução judicial, e que essas alterações não afetarão contratos de hipoteca celebrados anteriormente à aprovação da lei.

O direito à execução extrajudicial das garantias hipotecárias em geral só passará a existir após a aprovação do projeto e sua subsequente publicação como lei, não afetando negócios anteriores a ela, a menos que as partes envolvidas optem por aditar o contrato original para adotar expressamente o novo procedimento de execução extrajudicial da hipoteca.

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