O artigo 27 da Lei de Alienação Fiduciária e a polêmica acerca da devolução de valores em caso de não arrematação do imóvel nos leilões

09/06/2023

Por Mateus Matias Santos

O artigo 27 da Lei Federal nº 9.514, de 20 de novembro de 1997 é claro ao definir os procedimentos de realização da garantia face o inadimplemento do devedor nos casos de alienação fiduciária de imóveis. Em resumo, vencida e não paga a dívida, o credor fiduciário promoverá dois leilões extrajudiciais e, em não havendo arrematante, se tornará o proprietário pleno do imóvel por meio de adjudicação.

A apropriação da garantia pelo credor fiduciário está prevista no § 5º do artigo 27 daquela Lei. Caso o segundo leilão seja frustrado, sem que haja nenhum lance igual ou superior ao valor da dívida, esta será considerada extinta e o credor ficará exonerado da obrigação de cobrá-la. Já o § 6º dispõe que, nessa hipótese, o credor deverá outorgar a quitação da dívida em até cinco dias após o segundo leilão. O credor fica com a garantia e o devedor recebe a quitação, é o que diz a lei.

No entanto, a 29ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em recente julgado, entendeu que, se o imóvel for avaliado em valor superior ao da dívida e não houver lance no segundo leilão, o credor fiduciário deverá devolver ao devedor a diferença entre o valor do imóvel e o valor da dívida:

(…)

O primeiro leilão, adotado o valor da avaliação do imóvel (R$ 705.149,19) e o segundo, pelo valor da dívida (R$ 422.152,64) de acordo com o edital a p. 282, resultaram negativos, tendo o credor fiduciário adjudicado o bem (p. 283/284) e, nos termos do art. 27, § 5°, da lei 9.514/97, deu por quitada a dívida, desobrigando-se de devolver qualquer quantia aos autores.

(…)

Contudo, não há como exonerar o credor fiduciário da obrigaçãoprevista no §4º do art. 27 da lei de regência, isto é, de restituir aos devedores eventual diferença que sobeje ao valor do débito.

Portanto, nos casos em que o bem seja adjudicado por valor superior ao débito, deve haver restituição ao devedor fiduciante de eventual saldo credor, no caso, calculado entre o valor da dívida, acrescido dos encargos descritos nos §§ 2º- B e 3º, do art. 27, da Lei nº 9.514/97, e o valor da adjudicação (imóvel incorporado ao patrimônio do credor pela avaliação) e o valor do débito, atualizado.

Em síntese, os autores deverão receber a quantia relativa à diferença entre o valor da avaliação e o valor da dívida, atualizados, acrescidos os encargos descritos nos §§ 2º-B e 3º, do art. 27, da Lei nº 9.514/97, cujo exato montante deverá ser encontrado mediante cálculo aritmético, em liquidação de sentença, na fase própria, adotados os parâmetros citados. [1]

Segundo o julgado, a devolução do valor é necessária para evitar o enriquecimento sem causa do credor fiduciário, já que a propriedade plena do imóvel, com as obrigações quitadas, seria transferida para o credor sem que o devedor tivesse recebido a contrapartida do valor excedente.

Referido entendimento foi ratificado pela 4ª Turma do STJ, no AgInt no Agravo em Recurso Especial nº 2.039.395/SP, sob relatoria do Ministro Raul Araújo, que dentre outros pontos destacou a vedação de enriquecimento sem causa do credor fiduciário:

(…)

Em caso de leilão infrutífero e posterior adjudicação do bem pela instituição financeira e o valor da avaliação do imóvel superou o montante do saldo devedor remanescente, é devido à instituição financeira adjudicante a restituição aos mutuários da diferença, sob pena de enriquecimento sem causa do agente financeiro. [2]

Essa interpretação, no entanto, não encontra respaldo na lei. O § 5º do artigo 27 não faz nenhuma menção a devolução de valores ao devedor fiduciante, e sim apenas à extinção da dívida e exoneração do credor. Além disso, a interpretação exarada pelo TJSP e pela 4ª Turma do STJ, vai de encontro ao entendimento da 3ª Turma daquela Corte Superior, que já decidiu em diversas oportunidades que não cabe devolução de valores ao devedor fiduciante nos casos em que não há arrematação nos leilões previstos na lei.

Em um caso julgado pela 3ª Turma em 2018 (REsp n. 1.654.112/SP), por exemplo, ficou decidido que, se não houver arrematação nos dois leilões previstos na lei, o credor fiduciário se tornará o proprietário pleno do imóvel com obrigações quitadas em relação ao devedor:

RECURSO ESPECIAL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. IMÓVEL. LEILÕES. FRUSTRAÇÃO. PRETENSOS ARREMATANTES. NÃO COMPARECIMENTO. LANCES. INEXISTÊNCIA.

1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nos 2 e 3/STJ).

2. Cinge-se a controvérsia a definir se o § 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 é aplicável às hipóteses em que os dois leilões realizados para a alienação do imóvel objeto da alienação fiduciária são frustrados, não havendo nenhum lance advindo de pretensos arrematantes.

3. Vencida e não paga a dívida, o devedor fiduciante deve ser constituído em mora, conferindo-lhe o direito de purgá-la, sob pena de a propriedade ser consolidada em nome do credor fiduciário com o intuito de satisfazer a obrigação. Precedente.

4. Inexistindo a purga da mora, o credor fiduciário terá o prazo de 30 (trinta) dias, contado do registro de averbação da consolidação da propriedade na matrícula do respectivo imóvel, para promover o leilão público com o objetivo de alienar o referido bem.

5. O § 5º do art. 27 da Lei nº 9.514/1997 abrange a situação em que não houver, no segundo leilão, interessados na aquisição do imóvel, fracassando a alienação do bem, sem a apresentação de nenhum lance.

6. Na hipótese, frustrado o segundo leilão do imóvel, a dívida é compulsoriamente extinta e as partes contratantes são exoneradas das suas obrigações, ficando o imóvel com o credor fiduciário.

7. Recurso especial provido. [3]

Essa mesma decisão do STJ já foi objeto de outro artigo do nosso escritório (clique aqui).

Apesar da divergência entre a 4ª e 3ª Turmas do STJ com respeito ao tema, o entendimento exarado pela 3ª Turma nos autos do REsp nº 1.654.112/SP mostra-se mais adequado e coerente com a interpretação do artigo 27 e seus parágrafos, além de considerar a finalidade da alienação fiduciária em garantia, que é assegurar ao credor o recebimento da dívida por meio da alienação do imóvel em caso de inadimplência do devedor.

Em suma, diante da divergência existente, deve prevalecer o entendimento da 3ª Turma, haja vista que define, nos casos em que não há arrematação nos dois leilões previstos na Lei 9.514, que o credor fiduciário se tornará o proprietário pleno do imóvel com obrigações quitadas em relação ao devedor fiduciante, sem que haja qualquer obrigação de devolução de valores.

Diante da complexidade de aspectos como esse ligados às alienações fiduciárias, é recomendável que os interessados em celebrar esse tipo de contrato busquem a assessoria de profissionais especializados. A assinatura de um acordo prévio, disciplinando, por exemplo, as consequências de não arrematação do imóvel nos leilões (um “pacto de torna”), pode ser uma solução interessante para os credores, e, portanto, é recomendável uma boa orientação jurídica.

 

[1] TJSP – Apelação Cível 1076574-09.2021.8.26.0100; 29ª Câmara de Direito Privado; Relator: Mário Daccache; Data do Julgamento: 31/01/2023; Data de Publicação: 31/01/2023.

[2] AgInt no AREsp n. 2.039.395/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 15/08/2022, DJe de 26/08/2022.

[3] REsp n. 1.654.112/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 23/10/2018, DJe de 26/10/2018.

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