Credor fiduciário não é responsável pelo IPTU do imóvel alienado

13/09/2022

Por Victoria Barbosa Bonfim

O artigo 32, caput, do Código Tributário Nacional (“CTN”), prevê que o fato gerador do IPTU é “a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.”

Sobre a propriedade fiduciária de bem imóvel, o artigo 22, da Lei nº 9.514 de 1997 define o contrato que a institui como “o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel”.

A constituição de “propriedade resolúvel” por meio da alienação fiduciária, apesar do nome, não é verdadeiramente uma transferência de propriedade: trata-se apenas de uma forma de garantia à dívida do fiduciante.

A legislação prevê que, uma vez verificado o pagamento integral da dívida, a propriedade plena do imóvel é devolvida ao devedor fiduciante, e a extinção da propriedade resolúvel do credor é automática. Ao contrário, caso haja o inadimplemento, ocorre a consolidação da propriedade plena no patrimônio do credor fiduciário.

Enquanto nenhuma dessas duas hipóteses se concretizar, de acordo com o parágrafo único do artigo 23 da Lei nº 9.514 de 1997, o devedor fiduciante fica com a posse direta do imóvel, e o credor fiduciário com a posse indireta. No entanto, a posse indireta exercida neste período está despida de ânimo de domínio, pois em hipótese alguma o imóvel poderá ser mantido com o credor fiduciário, porquanto a Lei o obriga a levar o bem a leilão assim que ocorrer a consolidação da propriedade em seu nome.

Dessa forma, a propriedade adquirida pelo credor fiduciário não é e nunca será plena – e o artigo 1.367 do Código Civil elimina quaisquer dúvidas a esse respeito:

“Art. 1.367. A propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código e, no que for específico, à legislação especial pertinente, não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o art. 1.231.”

Vale salientar que o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento firme no sentido de que o IPTU não é devido pelo proprietário que esteja despido dos poderes de propriedade, por aquele que não detém o domínio útil sobre o imóvel, ou pelo possuidor sem ânimo de domínio[1].

Para além disso, de acordo com os artigos 1.368-B do Código Civil, e 27, parágrafo 8º, da Lei nº 9.514 de 1997, é somente após a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário que poderá ocorrer sua responsabilização. De fato, este evento demanda a aplicação do artigo 130 do CTN, no sentido de que os débitos de impostos cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis sub-rogam-se na pessoa do adquirente.

Com isso, chega-se à conclusão de que o credor fiduciário não pode ser responsabilizado pelo IPTU do imóvel alienado, seja como contribuinte ou como responsável solidário, enquanto não for imitido na posse do imóvel, pois não possui a propriedade, tampouco a posse ou a titularidade do domínio útil previstas pelo artigo 32 do CTN como fato gerador do imposto. O único responsável pelo IPTU nesse período deve ser o devedor fiduciante.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já decidiu de maneira favorável ao credor fiduciário em diversas oportunidades[2]. Cita-se, à título exemplificativo, o seguinte julgado:

“TRIBUTÁRIO – AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO FISCAL – IPTU – EXERCÍCIOS DE 2018 E 2019 – MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Decisão que rejeitou a exceção de pré-executividade – Recurso interposto pelo coexecutado. ILEGITIMIDADE PASSIVA – OCORRÊNCIA – Alienação fiduciária – Transmissão da propriedade resolúvel do imóvel ao credor fiduciário – Em caso de inadimplemento da dívida garantida pela alienação fiduciária, a propriedade aperfeiçoa-se em nome do credor fiduciário – Em tal hipótese, o devedor fiduciante responde pelos débitos incidentes sobre o imóvel até a imissão do fiduciário na posse – Inteligência dos artigos 26 e 27, § 8º, da Lei Federal nº 9.514/1994 – Pela alienação fiduciária, a propriedade resolúvel é transmitida ao credor apenas para fins de garantia da dívida, sem os atributos inerentes ao direito de propriedade – Por esse motivo, o credor fiduciário não é sujeito passivo do IPTU incidente sobre o imóvel, a menos que ocorra o inadimplemento da dívida e a consolidação da propriedade – Precedentes desta C. Câmara. No caso, a execução fiscal foi ajuizada contra o devedor fiduciante e contra o credor fiduciário – Não há notícia de que tenha havido o inadimplemento da dívida e a consolidação da propriedade pelo fiduciário, de forma que esse não pode ser considerado sujeito passivo da obrigação em relação ao IPTU – Extinção da execução fiscal em relação ao credor fiduciário. (…). Decisão reformada – Recurso provido.”[3]

No STJ também há precedentes sobre a ausência de responsabilidade do credor fiduciário pelo IPTU do imóvel alienado:

“TRIBUTÁRIO. IPTU. SUJEITO PASSIVO. IMÓVEL OBJETO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. CREDOR. RESPONSABILIDADE ANTES DA CONSOLIDAÇÃO DA PROPRIEDADE. IMPOSSIBILIDADE. 1. O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento submetido ao rito dos recursos especiais repetitivos, consolidou o entendimento de que cabe ao legislador municipal eleger o sujeito passivo do IPTU, entre as opções previstas no CTN. 2. A jurisprudência desta Corte, interpretando o art. 34 do CTN, também orienta não ser possível a sujeição passiva ao referido imposto do proprietário despido dos poderes de propriedade, daquele que não detém o domínio útil sobre o imóvel ou do possuidor sem ânimo de domínio. 3. O credor fiduciário, antes da consolidação da propriedade e da imissão na posse no imóvel objeto da alienação fiduciária, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU, uma vez que não se enquadra em nenhuma das hipóteses previstas no art. 34 do CTN. 4. Agravo conhecido e provido o recurso especial.”[4]

Não se poderia deixar de mencionar também o decidido pelo Supremo Tribunal Federal sobre a responsabilidade pelo IPVA dos veículos alienados, quando julgou o Tema 685 da Repercussão Geral, uma vez que esse precedente pode ser aplicado por analogia aos casos que envolvam bens imóveis. Veja-se trecho do voto vencedor exarado no caso:

“Havendo o desdobramento das faculdades da propriedade, isto é, separando-se a posse dos demais poderes a ela inerentes, o critério para a aplicação da regra de imunidade deve ser a titularidade da posse direta.
Considerando ser a alienação fiduciária o negócio jurídico por meio do qual o devedor fiduciante, em garantia de direito creditório, transfere ao credor fiduciário a propriedade resolúvel de bem móvel ou imóvel, mantendo-se na posse direta, é de assentar a aplicação da regra de imunidade versada no artigo 150, inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal quando o devedor fiduciante for pessoa jurídica de direito público. (…)”[5]

Ou seja, o Plenário do STF decidiu que, apesar de a Lei prever que o sujeito passivo do IPVA é o proprietário do veículo, isso não abarca a propriedade resolúvel dos contratos de alienação fiduciária, pois o sujeito passivo do imposto deve obrigatoriamente deter a posse direta do bem – e o credor fiduciário detém a posse indireta. E não se pode entender diferente quanto ao IPTU de imóvel alienado fiduciariamente.

Sucede que, apesar da jurisprudência pacífica do TJSP e dos Tribunais Superiores, existem Prefeituras que entendem que o credor fiduciário é responsável pelo IPTU em qualquer hipótese. A principal justificativa adotada pelos municípios para inclusão dos credores fiduciários no polo passivo das ações executivas é o entendimento do STJ no sentido de que compete aos municípios elegerem, por meio de lei local, aquele constará como sujeito passivo do IPTU dentre aqueles previstos no rol do artigo 34 do CTN[6].

Por exemplo, para o Município de São Paulo, o credor fiduciário seria detentor do domínio útil, razão pela qual o lançamento do IPTU poderia ser feito em seu nome, conforme demonstra a ementa do julgado do Conselho Municipal de Tributos de São Paulo abaixo transcrita:

“IPTU – EXERCÍCIO DE 2008 – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL – PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA EM NOME DA RECORRENTE – APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 34 DO CTN, DA SÚMULA Nº 399 DO STJ E DOS ARTIGOS 2º E 23 DA LEI Nº 6.989/66 – SUJEIÇÃO PASSIVA TRIBUTÁRIA DO PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO, HAJA VISTA QUE DETÉM O DOMÍNIO ÚTIL DO IMÓVEL – RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.” [7]

Considerando o posicionamento das Prefeituras sobre essa questão, é imprescindível contestar a cobrança judicialmente para fazer prevalecer o entendimento jurisprudencial pacífico sobre a temática.

Nosso escritório recentemente ingressou com ação judicial com pedido liminar em nome de um credor fiduciário que adquiriu a propriedade fiduciária de um imóvel e passou a ser cobrado pelo IPTU sobre ele incidente. O Juiz da 14ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu a liminar em favor do credor fiduciário, suspendendo a exigibilidade do IPTU do imóvel alienado fiduciariamente, e impedindo a Prefeitura de São Paulo de cobrar o imposto.

Em conclusão, a perspectiva atual é favorável ao credor fiduciário que pretende questionar a cobrança do IPTU de imóvel alienado fiduciariamente. A palavra final sobre o assunto deve vir do STJ, quando julgar o Tema Repetitivo 1.158, que tem tudo para ter um resultado positivo para os credores fiduciários.

 

[1] Nesse sentido: (i) AgInt no AREsp 1.505.995/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, 1ª TURMA, julgado em 08/02/2021, DJe 17/02/2021; (ii) AgInt no AREsp 1.516.702/BA, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, 1ª TURMA, julgado em 07/12/2020, DJe 17/12/2020; (iii) AgInt no AREsp 1.513.098/ES, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, julgado em 12/11/2019, DJe 19/12/2019, entre outros.

[2] Nesse sentido: (i) TJSP; Agravo de Instrumento 2241979-89.2021.8.26.0000; Relator (a): Tania Mara Ahualli; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro das Execuções Fiscais Municipais – Vara das Execuções Fiscais Municipais; Data do Julgamento: 16/12/2021; Data de Registro: 27/01/2022; (ii) TJSP; Agravo de Instrumento 2185535-36.2021.8.26.0000; Relator (a): Roberto Martins de Souza; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Público; Foro das Execuções Fiscais Municipais – Vara das Execuções Fiscais Municipais; Data do Julgamento: 16/12/2021; Data de Registro: 01/02/2022; (iii) TJSP; Apelação Cível 1008166-19.2019.8.26.0590; Relator (a): Amaro Thomé; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro de São Vicente – Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 08/07/2022; Data de Registro: 08/07/2022, entre outros.

[3] TJSP; Agravo de Instrumento 2185907-82.2021.8.26.0000; Relator (a): Eurípedes Faim; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Público; Foro das Execuções Fiscais Municipais – Vara das Execuções Fiscais Municipais; Data do Julgamento: 04/10/2021; Data de Registro: 05/10/2021.

[4] AREsp n. 1.796.224/SP, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 16/11/2021, DJe de 9/12/2021.

[5] RE 727851, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-179 – DIVULG 16-07-2020 – PUBLIC 17-07-2020.

[6] REsp n. 1.111.202/SP, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, julgado em 10/06/2009, DJe de 18/06/2009.

[7] Conselho Municipal de Tributos de São Paulo/SP. Recurso Ordinário. Processo administrativo nº: 2009-0.071.914-8. Recorrente: CIBRASEC – CIA. BRASILEIRA DE SECURITIZAÇÃO. Conselheiro Relator: Rafael Correia Fuso. Câmara Julgadora: 3ª Câmara Julgadora Efetiva. Data do julgamento: 10 de junho de 2010.

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