Artigo publicado no Valor Econômico do dia 17 de agosto de 2022.
A antecipação de recebíveis é uma das principais formas de financiamento das empresas. Para a obtenção de capital de giro, as empresas costumam realizar a cessão de títulos de créditos a empresas de factoring ou securitização, ou a FIDCs, principais agentes desse mercado, a fim de adiantarem o recebimento das suas vendas.
Ao negociarem a antecipação de recebíveis, os agentes desse mercado normalmente se preocupam em avaliar os riscos associados à causa que originou os títulos de crédito a serem cedidos e a saúde financeira do sacado – isto é, o devedor dos créditos cedidos –, e do cedente dos títulos, que responde pela origem dos créditos.
A experiência nos mostrou que dificilmente os agentes do mercado analisam o risco potencial de a operação de antecipação de recebíveis caracterizar fraude contra o fisco. Não que esse tipo de operação esteja sujeito a esse tipo de fraude – na nossa opinião, não deveria –, mas o fato é que muitas empresas e fundos não têm nem sequer noção de que estão potencialmente expostas a esse risco.
Comete fraude contra o fisco quem aliena ou onera bens sem reservar outros ativos suficientes ao total pagamento de débitos tributários inscritos em dívida ativa, conforme o art. 185 do CTN. Constatada a fraude, a alienação é declarada ineficaz. Isso acontece muito em operações de venda de imóveis e veículos. O adquirente não adota as cautelas necessárias, compra o bem de pessoa devedora do fisco, e depois é surpreendido com a declaração de ineficácia da compra, amargando o prejuízo.
Não há dúvidas de que os negócios envolvendo bens imóveis e veículos (desde que não sejam do estoque) estão sujeitos ao risco de fraude tributária. Os adquirentes dessas espécies de bens devem se preocupar com isso e adotar as cautelas necessárias para concretizar a compra de bens de pessoas com dívidas fiscais. O que se propõe analisar neste singelo artigo é se o disposto no art. 185 do CTN deve ser aplicado às operações de antecipação de recebíveis, que envolvem ativos circulantes das empresas.
Deparamo-nos recentemente com alguns casos em que a procuradoria requereu, em processos de execução fiscal, a declaração de fraude na cessão de títulos de créditos por empresas, situação que nos pareceu preocupante.
Na nossa opinião, o art. 185 do CTN não deve ser aplicado às operações de antecipação de recebíveis; o texto legal não diz isso expressamente, mas vemos algumas razões para entender dessa forma.
A nosso ver, a presunção de fraude é aplicável à venda de bens que compõem o ativo não-circulante do devedor, que não estejam relacionados à sua atividade‐fim. Não faz sentido a fraude alcançar a venda de qualquer ativo, pois, se assim fosse, a maioria das empresas estaria impedida não só de comercializar seus estoques de produtos, mas também de tomar empréstimos, pois toda e qualquer disponibilidade do caixa, desde que não destinada ao fisco, seria considerada fraude. Suas atividades estariam praticamente inviabilizadas. A restrição à venda ou oneração de qualquer ativo circulante, incluindo-se o estoque e as duplicatas a receber, criaria um embaraço irrazoável à organização e condução dos seus negócios.
O nosso entendimento se confirma a partir da análise sistemática da legislação tributária. Vejamos.
Um dos instrumentos que o fisco dispõe para impedir que o contribuinte cometa a fraude contra o fisco é a chamada Medida Cautelar Fiscal, prevista na Lei n. 8.397 de 1992, que causa a indisponibilidade dos bens do contribuinte. De acordo com a referida lei, a indisponibilidade recairá somente sobre os bens do ativo não-circulante da empresa, o que nos permite concluir, por óbvio, que a fraude não se presume na alienação de ativos circulantes.
Outro exemplo. Prevista na Lei n. 13.606 de 2018, a averbação pré-executória é o ato pelo qual se anota nos órgãos de registros de bens e direitos, para o conhecimento de terceiros, a existência de débito inscrito em dívida ativa, visando a prevenir a fraude contra o fisco. A averbação pré-executória recai apenas sobre os bens integrantes do ativo não circulante. O que entendemos a partir disso: que não há fraude na alienação de bens do ativo circulante.
Para atingir os bens integrantes do ativo circulante, o credor fiscal deve atuar com um mínimo de agilidade, ingressar com a ação de execução, utilizar-se dos sistemas informatizados de penhora (Sisbajud, Renajud etc.), dispondo ainda de ferramenta específica para atingir recebíveis, a penhora de percentual de faturamento de empresa, prevista no art. 866 do CPC.
O que não se pode admitir é o fisco querer responsabilizar os financiadores da atividade empresarial pelas dívidas fiscais das empresas financiadas, valendo-se de interpretação claramente abusiva da legislação. Na venda a prazo, nenhuma violação ocorre, desde que o comprador pague no vencimento. Mas se o pagamento é antecipado, quem financiou essa operação financeira comete fraude? Não faz sentido.
O art. 185 do CTN não pode ser aplicado de forma abrangente e inespecífica. A lei deve ser interpretada à luz de outras normas e princípios, como o da preservação da empresa e dos postos de trabalho. A aplicação da regra da fraude tributária deve ser restrita – aos bens do ativo não-circulante –, pois, do contrário, a sua ampla e irrestrita aplicação ou condenará à morte a maioria das empresas, que necessitam da antecipação de recebíveis para sobreviver a duras penas, ou aumentará (mais) o custo em operações financeiras, diante dos riscos assumidos pelos financiadores.
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