Nos últimos anos, a digitalização das operações comerciais transformou profundamente a forma de documentar e comprovar as transações entre empresas. Nesse contexto, a Nota Fiscal eletrônica (NF-e) consolidou-se como o principal instrumento de registro das operações mercantis, acompanhada de um módulo específico — a Manifestação do Destinatário — que permite ao comprador manifestar-se oficialmente sobre notas fiscais emitidas em seu nome.
Regulamentado pelo Manual de Orientação ao Contribuinte (MOC) e operacionalizado pelas Secretarias de Fazenda, esse mecanismo tornou-se essencial não apenas para o controle fiscal, mas também para a segurança jurídica das duplicatas e dos direitos creditórios adquiridos por FIDCs, companhias securitizadoras e empresas de factoring.
De modo geral, o sistema foi concebido para ampliar a transparência e a rastreabilidade das operações eletrônicas, assegurando que o destinatário possa reconhecer, contestar ou acompanhar a emissão das notas que lhe são destinadas. As regras constam na versão 7.0 do MOC, documento técnico oficial que disciplina o funcionamento da NF-e em todo o território nacional.
O MOC define quatro tipos de eventos possíveis: Ciência da Operação ou da Emissão (210210), Confirmação da Operação (210200), Desconhecimento da Operação (210220) e Operação não Realizada (210240). Cada um desses eventos tem função específica, de modo que eles não podem ser usados indistintamente.
A Ciência da Operação é uma manifestação preliminar. Segundo o manual, deve ser utilizada quando o destinatário “declara ter ciência sobre uma determinada operação destinada ao seu CNPJ ou CPF, mas não possui elementos suficientes para apresentar a sua manifestação conclusiva sobre a operação citada.” (MOC, item 3.2.1.4). Ou seja, é uma forma de dizer ao Fisco, por exemplo: “tenho conhecimento desta operação, mas ainda preciso confirmar o recebimento da mercadoria”.
Após verificar a entrega e a regularidade da transação, o destinatário pode então registrar a Confirmação da Operação, ato que, segundo o próprio manual, “confirma a operação e o recebimento da mercadoria (para as operações com circulação de mercadoria)” (MOC, item 3.2.1.1). Esse evento, portanto, encerra a dúvida: o destinatário reconhece que a operação ocorreu, que recebeu o produto e que a nota corresponde a um negócio real.
Na prática, imagine-se uma empresa que compra insumos e, ao receber a mercadoria, confere o pedido e manifesta a confirmação da operação na SEFAZ. Esse registro eletrônico tem peso jurídico: serve como prova inequívoca do recebimento da mercadoria e, por consequência, permite a cobrança da duplicata emitida pelo fornecedor. É um meio de proteger tanto o emitente quanto terceiros de boa-fé, como fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs), que adquirem tais duplicatas como ativos legítimos.
Outra hipótese prevista é o Desconhecimento da Operação, usada quando o contribuinte identifica uma nota emitida indevidamente contra seu CNPJ e afirma que não reconhece aquela transação.
Já o evento Operação não Realizada destina-se a casos específicos em que a operação não se concretizou — por exemplo, quando houve recusa no ato do recebimento, extravio da carga ou cancelamento antes da entrega —, “não cabendo neste caso a emissão de uma Nota Fiscal de devolução” (MOC, item 3.2.1.3).
Portanto, a “Operação não Realizada” não deve ser usada quando a mercadoria já foi recebida, mesmo que depois seja devolvida. Nessa hipótese, o procedimento correto seria emitir uma Nota Fiscal de devolução, mantendo a confirmação da operação registrada. O próprio MOC esclarece que, se houver devolução total ou parcial, o destinatário deverá “gerar a Nota Fiscal de devolução” e ainda “comandar o evento da ‘Confirmação da Operação’” (MOC, item 3.2.1.1).
Deve-se acrescentar, ainda, que a devolução de mercadorias após a declaração de recebimento sem ressalvas perante o endossatário — como um FIDC — é igualmente contraditória e antijurídica. Uma vez confirmada a operação e reconhecida a entrega da mercadoria, o título se torna autônomo e abstrato, de modo que o sacado não pode opor exceções pessoais ao terceiro de boa-fé. Essa análise foi aprofundada no artigo “Devolução de mercadorias e duplicatas: jurisprudência e práticas eficazes de cobrança”, de autoria de Marcelo Augusto de Barros, publicado no Capítulo 11 do livro FIDC – Direito aplicado às operações de cessão de créditos e securitização de recebíveis: experiência jurídica, jurisprudência e prática de mercado (Editora LUX, 2025), coordenado por Cylmar Pitelli Teixeira Fortes e Marcelo Augusto de Barros. A versão digital da obra está disponível na Amazon Kindle Store.
Como exposto nesse capítulo do livro, a devolução posterior — sobretudo quando ocorre após aceite, confirmação da operação, pagamento parcial ou decurso de prazo considerável — não descaracteriza a obrigação e afronta princípios basilares do direito cambiário e da boa-fé objetiva. A duplicata, uma vez aceita e confirmada, mantém sua exigibilidade, e eventuais inconformismos devem ser resolvidos no plano contratual entre fornecedor e comprador, sem prejuízo do direito autônomo do endossatário de exigir o pagamento.
Do ponto de vista lógico e jurídico, não há sentido em um destinatário manifestar primeiro a ciência, depois a confirmação da operação e, posteriormente, declarar “operação não realizada” ou “desconhecimento da operação”, ainda que o sistema permita objetivamente esse tipo de comando (MOC, item 3.2.1.4). O próprio exemplo citado no MOC é, aliás, pouco feliz: menciona a hipótese de o destinatário “desconhecer uma operação que havia confirmado inicialmente”, o que contraria a própria finalidade do evento e o conceito de confirmação como ato de reconhecimento definitivo. Essa sequência é contraditória e incompatível não apenas com o sistema da NF-e, mas também com a realidade fática e jurídica, sobretudo quando a confirmação foi ratificada perante terceiros de boa-fé, como fundos ou securitizadoras.
Casos exemplificativos demonstram que alguns destinatários, após confirmarem operações e receberem mercadorias, tentam posteriormente registrar “operação não realizada” ou lavrar boletins de ocorrência para afastar cobranças legítimas, como se o negócio jamais tivesse existido, tudo para tentar frustrar a cobrança por FIDCs e outros endossatários. Essa conduta é tecnicamente irregular e não tem respaldo nas normas da SEFAZ ou do SERPRO, podendo inclusive configurar tentativa de fraude documental ou até crime de estelionato.
Em suma: confirmar a operação é reconhecer o negócio jurídico; e, a partir daí, as eventuais divergências devem ser resolvidas pelos meios comerciais e jurídicos adequados, jamais por contradições registradas em sistemas oficiais.
Para os FIDCs, companhias securitizadoras de recebíveis comerciais e empresas de factoring, compreender o alcance e os limites da manifestação do destinatário é essencial não apenas para validar o lastro, mas também para se resguardar de tentativas de desconstituição artificial de obrigações já reconhecidas.
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