TJSP barra recuperação judicial usada para blindar dívidas extraconcursais

02/09/2025

Por Roberto Caldeira Brant Tomaz

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) pôs freio a uma tentativa de “blindagem” indevida por parte de uma transportadora rodoviária de cargas que requereu recuperação judicial em São José do Rio Preto/SP. Em decisão da 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, relatada pelo desembargador Grava Brazil, o colegiado acolheu recurso de um credor e indeferiu a petição inicial da recuperação judicial, entendendo que o processo foi manejado com desvio de finalidade: em vez de servir à reorganização de um passivo típico de recuperação, a medida buscava paralisar a cobrança de dívidas que, por lei, ficam fora do processo (as chamadas obrigações “extraconcursais”), especialmente financiamentos de caminhões com garantia de alienação fiduciária.

Vale esclarecer: a recuperação judicial existe para dar fôlego a empresas em crise, permitindo que negociem com seus credores e evitem a falência. Porém, nem todas as dívidas entram nessa negociação. Em regra, contratos garantidos por alienação fiduciária – comuns no financiamento de veículos – permanecem “de fora”. O credor pode pedir a retomada do bem mesmo durante o processo. O que a transportadora tentou fazer foi usar a recuperação como escudo para reter a frota sem pagar, apoiando-se na tese de que os caminhões seriam “essenciais” à atividade, e por isso não poderiam ser apreendidos durante o chamado “stay period” (o período inicial de proteção do devedor).

O TJSP viu nesse desenho fortes sinais de uso fraudulento da recuperação judicial. Primeiro, pela própria fotografia das dívidas: cerca de 92% do passivo era extraconcursal, isto é, composto por financiamentos garantidos – exatamente o tipo de obrigação que não se reorganiza pela via recuperacional. O passivo que de fato poderia ser negociado (o concursal) era pequeno, incapaz de, sozinho, justificar a abertura de um procedimento coletivo tão gravoso. Segundo, pela linha do tempo e pelos números do negócio: houve uma expansão acelerada e recente da frota e do endividamento, com contratos firmados/refirmados pouco antes do pedido, nenhum veículo quitado e baixa capacidade de pagamento apontada em trabalho pericial prévio. Em suma, a empresa aumentou a dívida e o tamanho do ativo imobilizado às vésperas de pedir proteção, o que soa mais como estratégia para travar credores do que como plano sério de soerguimento.

O tribunal também observou elementos externos que corroboram a suspeita de planejamento artificial: mudança simultânea de sede para o mesmo endereço por empresas relacionadas do mesmo setor, protocolo coordenado de processos de recuperação judicial e semelhança no perfil das dívidas. Embora não tenha reconhecido formalmente um grupo econômico entre elas, a coincidência de movimentos, somada à busca imediata por decisões de “essencialidade” de toda a frota, pintou o quadro de um uso instrumental da recuperação. Não havia demonstração específica, bem a bem, da real indispensabilidade dos veículos para a operação, mas sim uma aposta em fórmulas genéricas (“caminhões são essenciais para transportadoras”) para impedir apreensões. O colegiado foi claro ao rejeitar esse atalho, asseverando que essencialidade não é salvo-conduto automático; exige prova concreta, atual e individualizada.

Com esse conjunto probatório, a Câmara aplicou o art. 51-A, § 6º, da Lei de Recuperação e Falências para indeferir a petição inicial e extinguir o processo sem julgamento do mérito. A mensagem – correta e necessária – é dupla. Aos devedores: recuperação judicial não é redoma para encobrir financiamentos fiduciários recém-contraídos nem um “suspende tudo” universal. Aos credores e ao mercado: o Judiciário não tolerará o esvaziamento do instituto por usos oportunistas que geram insegurança e encarecem o crédito para quem precisa dele de verdade. Em tempos de aumento da litigiosidade e criatividade processual, decisões como esta preservam a finalidade social da recuperação: salvar negócios viáveis, e não transformar a lei em ferramenta de inadimplência planejada.

 

Agravo de Instrumento nº 2391019-43.2024.8.26.0000

Veja a decisão.

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