FIDC e registro de garantias: o fim de uma exigência cartorária controversa

01/07/2025

Por Mateus Matias Santos

Por serem constituídos sob a forma de condomínio de natureza especial, nos termos dos artigos 1.368-C e 1.368-E do Código Civil, os fundos de investimento em direitos creditórios (FIDC) não são pessoas jurídicas e, por conseguinte, não possuem personalidade jurídica, sendo representados por suas respectivas administradoras, conforme disposto no artigo 75, inciso XI, do Código de Processo Civil.

Embora não possuam personalidade jurídica, discute-se há anos se os FIDC podem ser titulares de direitos e obrigações vinculados aos seus interesses específicos, como no registro de contrato de alienação fiduciária, regido pela Lei nº 9.514/97.

Essa discussão ganhou contornos práticos relevantes diante das reiteradas exigências formuladas por alguns cartórios de registro de imóveis, que condicionavam o ingresso de garantias fiduciárias à titularidade da administradora do fundo, em vez do próprio FIDC. A interpretação restritiva, baseada exclusivamente na ausência de personalidade jurídica do FIDC, vinha gerando insegurança jurídica e entraves operacionais às estruturas usualmente adotadas no mercado.

Em razão da intensa controvérsia sobre o tema, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo em recente precedente sob relatoria do Desembargador e Corregedor Geral Francisco Loureiro, pacificou o entendimento no sentido de que o registro da alienação fiduciária pode ser realizado tanto em nome do próprio Fundo quanto da administradora— neste último caso, com a ressalva de que se trata de patrimônio separado, nos termos dos artigos 6º e 7º da Lei nº 8.668/93. Abaixo relevantes trechos do acórdão mencionado:

“Exposta a evolução dos fatos, verifica-se que a primeira exigência reside na necessidade, ou não, de aditamento do negócio jurídico de cessão de crédito em virtude de o cessionário se tratar de fundo de investimento em direitos creditórios (FIDC)
(…)
Justamente por serem constituídos sob a forma de condomínio de natureza especial nos termos dos artigos 1.368-C e 1.368-E do Código Civil, sem inclusão no rol do artigo 44 do mesmo diploma legal, há que se concluir que os fundos de investimento em direitos creditórios não são pessoas jurídicas e, por consequência, não possuem personalidade jurídica geral de direito material, sendo representados (ou presentados) por seu administrador fiduciário (…)
(…)
Embora não tenham a natureza de pessoa jurídica, o que se indaga é se os fundos de investimento em direitos creditórios podem ser titulares de determinados direitos e obrigações, peculiares a seus interesses específicos, como já entendeu a jurisprudência em relação aos condomínios edilícios.
Ainda que os regramentos citados, em especial a Resolução 175/22 da CVM, tratem da constituição e do funcionamento dos FIDC, não há previsão da forma como o administrador fiduciário emprestará personalidade jurídica a eles, diferentemente do que faz a Lei n. 8.668/93 em relação aos fundos de investimento imobiliário (artigos 1º e 6º ao 9º).
No que se refere aos Fundos de Investimento Imobiliários (FIIs), a Instrução CVM n. 175/2022 prevê de modo expresso que os ativos devem ser registrados em nome do administrador fiduciário.
(…)
No caso concreto, não se trata de Fundo de Investimento Imobiliário (FII), com regras específicas emanada pela CVM, mas sim de Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDIC). O crédito cedido, de titularidade do fundo, se encontra assegurado por direito real de garantia alienação fiduciária. O que se indaga é se a garantia real imobiliária deve ser registrada em nome do próprio Fundo ou em nome da administradora fiduciária.
A resposta é simples: diante da lacuna normativa, se admite que o registro seja feito tanto em nome no próprio Fundo como em nome da administradora fiduciária, nessa última hipótese com a ressalva de que se trata de patrimônio separado.
Passa-se à análise das duas possibilidades acima postas.
Admite-se o registro em nome da administradora fiduciária, que se aproxima da figura do trustee, acima referido. Em razão da omissão presente na legislação que trata especificamente sobre os FIDC, para a solução da controvérsia, necessário socorrer-se dos mecanismos de suprimento de elencados no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (…)
(…)
Dizendo de outro modo, diante de figuras jurídicas semelhantes dos FII e FIDC e tendo a Lei nº 8.668/93 tratado sobre a questão ora em análise, vê-se viável a aplicação, por analogia, dos dispositivos acima citados para que seja efetivado o registro do em nome da administradora fiduciária, observando-se rigorosamente o que dispõe a Lei n. 8.668/93 e a Instrução CVM n. 175/2022. Destaco que necessariamente deverá constar do registro que se trata de patrimônio separado, de titularidade do Fundo de Investimento (arts. 6º. e 7º. da Instrução CVM 157/2022.
Admite-se também, como segunda possibilidade, o registro direto da propriedade fiduciária em garantia em nome do próprio FIDC, apenas representado pela administradora. É verdade, como acima dito, que os Fundos de Investimento têm a natureza de condomínio especial e não constituem pessoas jurídicas, nem são titulares de personalidade jurídica geral de direito material.
Não é menos verdade, porém, que os tribunais e a doutrina em geral têm reconhecido a entes despersonalizados alguma personalidade, limitada às relações jurídicas de seu peculiar interesse. Isso porque existem diversas situações jurídicas que, para receber solução confortável, implicam o reconhecimento da personalidade jurídica do condomínio. Em decorrência disso na I Jornada de Direito Civil do CEJ do CJF, aprovou-se o enunciado de n. 90: “Admite-se a personalidade jurídica ao condomínio, desde que em atividade de seu peculiar interesse”. A posição equilibrada evita a exposição de riscos excessivos. Em reunião mais recente, a Jornada aprovou enunciado mais amplo (Enunciado n. 246): “Fica alterado o Enunciado n. 90, com supressão da parte final: ‘nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar interesse’. Prevalece o texto: ‘Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício’”. Embora o enunciados digam respeito ao condomínio edilício, a solução pode ser estendida aos condomínios especiais dos Fundos de Investimento.
(…)
Disso decorre que se pode admitir que a titularidade dos direitos creditórios constitui o patrimônio dos FIDCs. Não faria sentido admitir que a garantia real acessória a tais direitos creditórios, porém, devesse ser registrada em nome da administradora fiduciária.
(…)
As duas possibilidades são viáveis e não se excluem.

(TJSP – Apelação Cível 1126644-25.2024.8.26.0100; Conselho Superior da Magistratura, Relator: Francisco Loureiro (Corregedor Geral); Data do Julgamento: 13/05/2025; Data de Publicação: 14/05/2025)

Cabe ressaltar que, embora o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo tenha reconhecido a viabilidade do registro da alienação fiduciária em nome do próprio FIDC, o título em questão não foi admitido no registro imobiliário por conta de outras exigências formais. Essas questões, no entanto, são alheias ao tema aqui tratado.

Pois bem, a consolidação do entendimento de que o registro da alienação fiduciária pode ocorrer em nome do próprio FIDC — e não apenas da administradora — representa um marco que traz significativa segurança jurídica ao mercado dos fundos de investimentos em direitos creditórios. Isso porque é eliminado um obstáculo recorrente: a exigência cartorária de que somente a administradora pudesse figurar como credora fiduciária.

Além disso, esse posicionamento beneficia diretamente os principais prestadores de serviços do FIDC — como administradores fiduciários, gestores e consultores — que historicamente se deparam com exigências cartorárias infundadas ou excessivamente formalistas, baseadas na premissa de que apenas entes com personalidade jurídica plena poderiam figurar como titulares de direitos reais. Ao admitir que o FIDC figure diretamente no registro como credor fiduciário, o novo entendimento contribui para desonerar os prestadores de serviço da responsabilidade formal pela titularidade das garantias, conferindo-lhes maior segurança no exercício de suas funções típicas.

Importante destacar que, apesar de não constar no acórdão comentado, o artigo 43 do Anexo Normativo II da Resolução CVM nº 175 que dispõe sobre as regras específicas para os fundos de investimento em direitos creditórios, traz à tona a possibilidade de celebração de garantias de FIDC em nome do gestor ou de outros prestadores de serviços que representem o fundo:

“Art. 43. É vedado ao administrador e ao gestor, em suas respectivas esferas de atuação, aceitar que as garantias em favor da classe sejam formalizadas em nome de terceiros que não representem o fundo, ressalvada a possibilidade de formalização de garantias em favor do administrador, gestor ou terceiros que representem o fundo como titular da garantia, que devem diligenciar para segregá-las adequadamente dos seus próprios patrimônios.”

Outra alternativa viável e cada vez mais considerada pelos fundos de investimento em direitos creditórios é a designação de um agente de garantias para atuar como titular formal das garantias, inclusive no registro de bens imóveis. Essa solução se mostra especialmente útil em operações que envolvem múltiplos FIDCs sob uma mesma gestão, ou mesmo estruturas compartilhadas com securitizadoras pertencentes ao mesmo grupo econômico.

Essa possibilidade encontra respaldo expresso no artigo 853-A do Código Civil e que foi devidamente examinada pelo advogado Marcelo Augusto de Barros em outra oportunidade (clique aqui).

Em conclusão, a admissão, pelo Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, de que a alienação fiduciária pode ser registrada tanto em nome do FIDC quanto da administradora fiduciária, representa um avanço significativo na harmonização entre o regime jurídico dos FIDC e a prática registral. Essa interpretação corrige distorções, elimina entraves operacionais e fortalece a segurança jurídica de todos os agentes envolvidos nas estruturas do FIDC. Aliada à regulamentação da CVM e às possibilidades abertas pelo Código Civil, especialmente com a figura do agente de garantias, consolida-se um cenário normativo mais moderno e funcional.

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